quinta-feira, 30 de junho de 2016

Ciência nada básica!

Por Raquel Moreira Saraiva

As esponjas são invertebrados bastante estudados. Pertencem ao filo Porífera, e estão presentes no mar e na água doce. Por serem animais sésseis, ou seja, que não se locomovem livremente, elas se protegem contra possíveis predadores produzindo um verdadeiro arsenal de defesas químicas, os chamados metabólitos secundários - que constituem um caldeirão de possibilidades para as indústrias química e farmacêutica. Diversos estudos têm demonstrado uma grande variedade de propriedades terapêuticas dos metabólitos secundários, dentre elas antimicrobianas, antioxidantes, anti-hipertensivas, anticoagulantes, antiinflamatórias, cicatrizantes e até anti-carcinogênicas (para saber mais sobre o assunto, leia nosso post Uma história sobre esponjas).

Para que esses estudos sejam possíveis, é fundamental que se desenvolvam trabalhos prévios para conhecer o animal, através de análises taxonômicas, ecológicas, e assim por diante. Também é necessário isolar as moléculas bioativas que o animal produz para testar a estabilidade do composto, determinar sua estrutura química (para sua posterior síntese em laboratório), seus efeitos em diferentes concentrações e condições ambientais, etc. Todos estes constituem estudos de ciência básica. Só a partir desse conhecimento é possível avançar mais passos até que se chegue ao desenvolvimento de remédios, cosméticos e até suplementos nutricionais, a chamada ciências aplicada.


Ilustração: Joana Ho.
Recentemente, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) criticou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), o principal órgão de financiamento à pesquisa do estado, alegando que a entidade prioriza o financiamento de estudos que não tem utilidade prática. Declarações como esta são resultado de uma cultura que ignora o papel das pesquisas científicas para o avanço social. Por isso ainda são frequentes as manifestações de rejeição às pesquisas estritamente acadêmicas, mesmo entre as personalidades presumivelmente mais eruditas. Alckmin está certo em um ponto: em todas as áreas da ciência, nem todos os projetos tem utilidade prática. Mesmo a longo prazo. Só entre produtos marinhos bioativos, mais de 15.000 moléculas foram isoladas e testadas em 20 anos. No caso dos estudos de drogas, dentre as substâncias que passaram pela Fase I de testes clínicos entre 2006 e 2015 , apenas 9,6% foram aprovadas para comercialização, segundo a FDA (U.S. Food and Drugs Administration). 

Então o país está jogando dinheiro fora quando financia pesquisas “sem utilidade prática”? De forma alguma! Em resposta à declaração de Alckmin, o Conselho Superior da FAPESP ressaltou que algumas pesquisas são realizadas “para tornar as pessoas e as sociedades mais sábias e, assim, entenderem melhor o mundo em que vivemos, o que é uma das missões da ciência”. Além disso, o avanço da ciência muitas vezes é imprevisível, e quando desenvolvemos uma pesquisa nós não sabemos onde ela chegará. Ela é motivada de modo simultâneo pela expansão do conhecimento e para aprimorar nossas habilidades para melhorar o mundo. E uma breve olhada na história mostra que inovações importantes também surgiram a partir de pesquisas puramente acadêmicas, desde o velcro até o GPS e o aparelho de ressonância magnética.

Atualmente, cada vez mais cientistas rechaçam a separação entre as “ciências” básica e aplicada. A ciência básica é sim de extrema importância para o processo de inovação, ou seja, para a pesquisa extrapolar a bancada do laboratório e tornar-se um produto comercial. O cientista A. A. Toole (2011) ressaltou a importância da ciência básica para o desenvolvimento de inovação na área médica. Segundo o pesquisador, ela “fornece uma base de conhecimento que cria novas oportunidades para abordar os resultados terapêuticos e novas informações para a triagem química”. Ao contrário do que parece, essa dedução não é recente. Na inauguração da Faculdade de Ciências da Universidade de Lille (França), em 1854, Pasteur declarou: ''Caberá a nós, especialmente, não compartilhar a opinião destas mentes estreitas que desprezam tudo o que nas ciências não tem aplicação imediata''. Mas a discussão sobre a importância da ciência básica perdura há décadas. Um reflexo disto é que a promessa de retorno tecnológico advindo da pesquisa básica ainda não tem força para gerar investimentos dos cofres públicos para a ciência pura. Mesmo dentre os acadêmicos, onde supõe-se maior conhecimento sobre a magnitude e a vastidão da ciência, a pesquisa básica precisa ser “justificada”. Participei de muitos congressos na grande área de fisiologia. Tanto nas discussões sobre neurociências quanto sobre toxinologia*, era comum ouvir reclamações sobre a tal “justificativa” da importância do projeto que era exigida nos editais. Aparentemente, os projetos de pesquisa só seriam considerados relevantes se tivessem utilidade prática. Ou seja, só seriam contemplados se fosse alegada uma relação com um problema de saúde pública. E, como um mantra, a sentença “este estudo é importante para o desenvolvimento de novos medicamentos” é repetidamente proferida para justificar a importância prática de pesquisas que, a princípio, são puramente acadêmicas - mas que não são menos relevantes.

Uma solução para este modelo organizacional dicotômico foi proposta por Donald Stokes em 1997 (Fig. 1). Ele classifica duas dimensões para a pesquisa e inovação:  a aplicação do conhecimento e o avanço do conhecimento. A partir desta proposição, é estabelecido um gráfico com os seguintes quadrantes: (1) no canto superior à esquerda fica o chamado Quadrante de Bohr - inspirado nas pesquisas do físico Niels Bohr sobre a estrutura do átomo, representando a pesquisa básica sem nenhuma aplicação imediata; (2) o quadrante inferior à direita, o Quadrante de Edison, representando as pesquisas de Thomas Edison sobre lâmpadas elétricas - ou seja, pesquisas que visam diretamente o desenvolvimento tecnológico.


Figura 1. Modelo de quadrantes de pesquisa proposto por Stokes (adaptado de Stokes, 1997)

O quadrante superior direito é o Quadrante de Pasteur. Nele são classificadas as atividades de pesquisa que podem contribuir para o avanço do conhecimento,  mas que além disso tem grande potencial para aplicação. Assim, essa área consiste numa convergência das ciências puramente básica e aplicada. Com o Quadrante de Pasteur, Stokes demarca o campo científico que contempla os anseios sociais, como as pesquisas sobre o ambiente (i.e., estudos de conservação, ecologia, etc), dentre outros, como a decodificação do DNA e os estudos com as toxinas animais ou mesmo sobre as moléculas bioativas das esponjas. De acordo com Maxime Schwartz (2015), Louis Pasteur era conhecido por refutar a divisão dicotômica. Pasteur foi um cientista cuja carreira transitava entre a ciência básica e a ciência aplicada. Sempre procurando soluções para problemas práticos e refletindo sobre questões teóricas, o químico desenvolveu o método da pasteurização, bem como provou que a “teoria da geração espontânea” não estava correta, dentre outras realizações. A proposta de Stokes substitui o ultrapassado modelo “básica versus aplicada”, cuja “terminologia não reflete a rica conectividade e a interação de muitos tipos de pesquisa, e é uma barreira ao desenvolvimento de políticas construídas nas realidades da ciência e da tecnologia” (Narayanamurti, Odumosu & Vinsel, 2013). O modelo do Quadrante de Pasteur pode fortalecer a ciência básica sócio-politicamente e inspirar novas direções que encerrem o impasse entre política e comunidade acadêmica.

Ressalto novamente que toda a ciência carece de prestígio e reconhecimento no Brasil. Em detrimento do forte progresso que fez nos últimos 30 anos, com a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), desde 2015 a ciência brasileira tem sofrido sucessivas derrocadas. No último ano, a presidenta afastada, Dilma Rousseff, fez cortes orçamentários na pasta que alcançaram o valor de 2 bilhões de reais. Mais recentemente,  alegando contenção de gastos devido à crise econômica que o país enfrenta, o presidente interino Michel Temer agravou o quadro ao criar um ministério-quimera resultante da fusão do MCTI ao Ministério das Comunicações (MC). Os cientistas se opuseram fortemente à determinação, pela óbvia incompatibilidade deste enlace e temendo o enfraquecimento político do setor.

Esta decisão diverge da prática de outros países, como EUA, Japão, China e Coréia do Sul, que investem em ciência, tecnologia e inovação (incluindo ciência básica) como meio de gerar soluções para sair de crises econômicas. Naturalmente, a comunidade acadêmica conhece mais profundamente a importância das pesquisas para o desenvolvimento do país. Por isso, além de cobrar do governo políticas que fomentem e fortaleçam a pesquisa e a inovação, tem o dever de aumentar a interação entre o setor e a sociedade brasileira. A maior popularização, seja através de divulgação ou de programas de extensão com a comunidade, pode elucidar para todos os brasileiros o significado do conhecimento que é gerado nas universidades e nos centros de pesquisa. O incentivo à pesquisa na sua diversidade é importante! Pasteur escreveu em 1865: ‘‘É típico das descobertas científicas que uma supere a outra. O campo científico é inexaurível. Quanto mais lavrado, mais tesouros ele revela”. Embora não consigamos prever o caminho que ela percorre, podemos ter certeza de que direta ou indiretamente a ciência continuará a trazer benefícios econômicos, sociais e culturais para a sociedade, como tem feito há séculos.


*toxinologia: “área que compreende os estudos de venenos e toxinas de origem animal, vegetal e microbiana, incluindo o desenvolvimento de fármacos e da biologia dos animais peçonhentos ou venenosos” (Fonte: Pós Graduação em Toxinologia - Instituto Butantan)


Leia mais sobre esse assunto em:


Alckmin critica Fapesp por pesquisas 'sem utilidade prática' por Thaís Arbek e Reinaldo José Lopes






Larson, Charles F. "The Boom in Industry Research." Issues in Science and Technology 16, no. 4 (Summer 2000).


M. Schwartz, Science and the applications of science from Louis Pasteur to Jacques Monod, C. R. Biologies (2015), http://dx.doi.org/10.1016/j.crvi.2015.03.006


Narayanamurti, Venkatesh, Tolu Odumosu, and Lee Vinsel.   "RIP: The Basic/Applied Research Dichotomy." Issues in Science and Technology 29, no. 2 (Winter 2013).


Perdicaris S, Vlachogianni T, Valavanidis A (2013) Bioactive Natural Substances from Marine Sponges: New Developments and Prospects for Future Pharmaceuticals. Nat Prod Chem Res 1: 114 doi: 10.4172/ 2329-6836.1000114


Stokes, D E. O quadrante de Pasteur: a ciência básica e a inovação tecnológica. Campinas, SP: UNICAMP, 2005.


What's the Use of Basic Science? Por C.H. Llewellyn Smith


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Atenção ao embarcar!

Por Catarina Marcolin

Olá a todos mais uma vez. Faz tempo que não escrevo neste blog, muito mais tempo que não embarco num navio, mas com a passagem do dia mundial dos oceanos, muitas lembranças afloraram. A maioria eram lembranças boas, outras nem tanto. Especialmente de histórias que ouvi.

Em alguns outros posts publicados aqui no blog, você pode ter lido sobre as aventuras de trabalhar no mar, de mergulhar até o fundo dos oceanos, ou de viajar pelo mundo em navios estrangeiros. Mas trabalhar embarcado em um navio oceanográfico nem sempre é uma experiência fantástica, especialmente se você é uma mulher. 

É importante nos lembrarmos de que, quando estamos num navio, estamos também confinados, cercados pelo oceano, sem possibilidade de fazer uma ligação, sem acessar internet, sem ter a possibilidade de visitar um amigo ou familiar, não se pode voltar para casa quando bem entendermos. Um navio também é um ambiente extremamente masculino. A maioria dos tripulantes é composta por homens. Nos pelo menos cinco embarques dos quais participei, conheci uma única mulher tripulante fixa de um navio, ela era a enfermeira de um navio supply, aqueles que dão suporte à plataformas de petróleo. Em navios oceanográficos, não espere encontrar uma mulher tripulante. 

Quando à tripulação científica, daí sim, é mais fácil encontrar mulheres, apesar de haver uma preferência nítida a homens, pois muitos dos trabalhos envolvem força física. Precisamos carregar caixas, redes, frascos, equipamentos pesados. Mas não é somente isso! São muitas as atividades que, para serem desenvolvidas, necessitam de habilidades como liderança, iniciativa, comunicação, gerenciamento, manuseio de equipamentos, habilidades sociais e intelectuais. O trabalho é realmente duro, mas contrariando o senso comum, conheci mulheres que dão um baile em muitos homens, quando se trata de trabalho embarcado. Inclusive, eu mesma já fui impedida de embarcar num navio, o qual estava programado para realizar tarefas de um projeto do meu doutorado, sob o "argumento" de que não havia instalações adequadas para receber uma mulher. 

Se você acha que não é um grande problema este desequilíbrio usual na proporção entre homens e mulheres embarcados, talvez você possa perceber uma certa vulnerabilidade que nós mulheres podemos estar sujeitas em um ambiente como esse. Eu sempre embarquei em grupos grandes de pesquisadores e trabalhei com tripulações maravilhosas. Sempre fui tratada com enorme respeito. Infelizmente, nem sempre encontraremos este ambiente respeitoso no dia a dia de um embarque.

Para ilustrar essa vulnerabilidade que venho tentando destacar, entrevistei duas biólogas que me relataram situações extremamente inadequadas que viveram num embarque num navio em nossa costa brasileira. No post de hoje contarei a história de apenas uma delas. Ambas preferiram se resguardar pelo anonimato, então a chamarei de M a seguir.

BPCN: Alguma vez vocês já se foram excluída de um embarque para "dar espaço" a um homem?

M: Não, isso nunca aconteceu comigo, embora em nosso laboratório se dá mais preferência aos homens, pelo argumento de que à bordo há a necessidade eventual de se carregar peso.

BPCN: Quantas vezes vocês já trabalharam embarcadas e em quantas dessas vezes vocês passaram por situações desconfortáveis ou inconvenientes, que lhe causasse insegurança?

M: Participei de quatro embarques, aconteceram situações chatas em dois deles, mas em apenas um deles me senti insegura.

BPCN: Você poderia relatar alguma situação inconveniente que aconteceu com você? 

M: Eu embarquei duas vezes numa consultoria que contratou um navio para fazer um estudo de monitoramento ambiental. Um funcionário que trabalhava no convés fazia constantes brincadeiras de mau gosto com meu sotaque. Mas ele tinha problemas com outros funcionários também. 

A segunda situação, a que me deixou insegura, aconteceu num navio, que prefiro não revelar seu nome nem instituição de origem. Eu não  imaginava que fosse passar por algo semelhante num navio que pertence a uma instituição de muita credibilidade. Entretanto, já tinha ouvido alguns relatos de expedições anteriores e confesso que já tinha um certo receio de ir nesta expedição, mas não imaginei que aconteceria o que aconteceu.

Alguns membros da tripulação tinham um comportamento muito inapropriado. Todos os dias nós dividíamos a sala de refeições com alguns tripulantes. Antes mesmo de acabarmos nossas refeições, alguns tripulantes (de uma importante posição hierárquica dentro do navio) colocavam vídeos musicais de mulheres semi-nuas (funk, axé, pagode), sempre com imagens de homens e mulheres em coreografias insinuantes, fazendo alusão ao ato sexual, com som muito alto. Além disso, todos os dias havia consumo de álcool e os tripulantes nos ofereciam bebidas alcoólicas exaustivamente, especialmente para as mulheres, com intenção clara de nos embebedar. Eles tentavam exaltar seus méritos a todo momento, numa tentativa clara de conquista. Eu sempre me retirava da sala quando começavam com os vídeos e a bebedeira, e aconteceu de alguns deles virem atrás de mim, perguntando porque eu não queria beber, insistindo muito, me assediando. 

Isso não incomodava somente as mulheres, vários dos nossos colegas homens também se chateavam com a situação, mas em nenhum momento eles se manifestaram. Esta situação foi crescendo, culminando com o próximo caso a ser relatado. É importante destacar que este não era um comportamento de todos tripulantes. Ao mesmo tempo em que fomos assediadas por alguns, outros nos tratavam de forma muito respeitosa. 

Em um determinado dia houve uma confraternização com churrasco e as bebidas começaram desde cedo, pela manhã ainda. Um dos tripulantes bebeu tanto, que ameaçou se jogar do convés, o que causou enorme confusão. Durante o jantar, um dos nossos colegas (homem) estava jantando enquanto um dos tripulantes, que estava caindo o tempo inteiro de bêbado, derrubou cerveja na mesa, e após sua inútil tentativa de limpeza acabou atingindo com um guardanapo sujo o prato de nosso colega pesquisador, que ficou muito nervoso, pois entendeu que se tratava de um evento de racismo. 

Diante de tanta confusão nem consegui jantar neste dia por conta de tantos constrangimentos. Me dirigi para a copa para buscar uma fruta e lá parei alguns minutos para conversar com um tripulante sobre a situação. Neste momento entrou um outro tripulante que estava muito bêbado e ficou fazendo perguntas sobre minha amiga (pesquisadora). Eu tentei sair da copa, mas fui impedida pelo tripulante alcoolizado que insistia que eu fosse buscar minha amiga. Fui defendida pelo tripulante com o qual estava conversando e assim consegui sair da copa. Percebi que havia uma sensação de indignação por parte de vários tripulantes, pois este tipo de situação não poderia ser tolerado pela sua classe profissional. O que mais me deixou insegura é que em nenhum momento tivemos acesso ao comandante, nunca podíamos vê-lo e ele nunca respondeu aos nossos chamados e tentativas de contato. 


Ilustração: Caia Colla.

Para nossa sorte, um dos tripulantes levou o nosso caso ao comandante, que acabou por tomar uma providência, não sabemos exatamente qual foi, mas não vimos mais o tripulante que nos causava os maiores problemas. Fomos chamados para uma reunião com o imediato que ouviu, enfim, nossos relatos e convocou uma reunião com os causadores de problemas, proibindo o consumo de bebida alcoólica, os vídeos insultantes e os comportamentos que nos causavam desconforto. O comandante solicitou que o assediador se desculpasse publicamente comigo e com o meu colega pesquisador (sobre o evento do jantar), mas nada aconteceu com os outros assediadores.

Durante esta expedição, não foi possível realizar os trabalhos de coleta porque houve alguma avaria no navio logo. O navio perdeu sua velocidade e não conseguia mais navegar apropriadamente. O navio não nos desembarcou onde deveria, nos levando direto ao ponto final, e não nos foi comunicado o motivo, bem como não houve alguma explicação sobre o problema. Ficamos sete dias até chegar no nosso destino final, completamente ociosos sem informação do que estava acontecendo. 

Este mesmo navio e sua tripulação foi novamente disponibilizado para finalizarmos os trabalhos não concluídos nesta segunda expedição. Eu tive ainda que participar desta segunda expedição, mas felizmente não passamos por nenhuma outra situação de insegurança. 

Entretanto, nos deparamos com uma outra situação muito estressante e preocupante. Estávamos arrastando uma rede bongô, que deveria descer a 200 m de profundidade. Notamos que o arrasto estava durando muito pouco tempo. Descobrimos que o responsável do guincho recebeu ordens de um tripulante (superior ao operador do guincho e responsável pelas operações de convés no meu turno de trabalho) para descer menos corda do que precisávamos para que finalizássemos mais rápido o nosso serviço, comprometendo nossa amostragem e a qualidade dos nossos dados. 

BPCN: Porque você acha que o responsável pelas operações de convés tentou sabotar/boicotar o trabalho de vocês? Você acha que foi por ignorância ou foi uma tentativa deliberada de "se vingar"? 

M: Não faço a menor ideia. Não obtivemos nenhuma explicação. Não sabemos se foi vingança, desrespeito por sermos mulheres (uma mulher era a chefe da expedição), preguiça de trabalhar, pressa de voltar para casa, desrespeito pelo seu ambiente de trabalho… Enfim, qualquer que tenha sido o motivo, é muito lamentável por tudo que isso representa, é um gasto indevido de dinheiro público!

Também é super importante considerar a perda de uma valiosa informação científica, causada por um trabalho duvidoso/irresponsável por parte da tripulação. Especialmente nesta conjuntura em que nosso país se encontra no momento, obter recursos para a realização de coletas de campo, principalmente em regiões oceânicas, tem se tornado cada vez muito difícil. 


No fim das contas, os relatos que ouço e repasso demonstram claramente que nos embarques, seja com finalidade de pesquisa científica ou consultoria paralela, ainda existe preconceito sim por parte das tripulações masculinas, que tem a visão da mulher como sexo frágil, o que a torna inapropriada à vida a bordo, onde o dia a dia exige força e adaptações físicas para o trabalho realizado em um ambiente regido pelos movimentos das correntes marinhas.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Atuar em oceanografia implica obrigatoriamente em ter uma carreira acadêmica?

Por Adriana Lippi

Desde que ingressei na graduação de oceanografia sempre ouvi questionamentos relacionados ao "o que você vai fazer": O que o oceanógrafo faz? Trabalha com pesquisa, né? Vai trabalhar no TAMAR, certo? entre outros. Eu também não tinha muita certeza de como iria ser depois de formada, mas considerava a carreira na ciência.

Ao começar o meu curso também me engajei em diferentes atividades durante a graduação: participei de entidades estudantis, empresa júnior, me lancei a editar um informativo impresso para os alunos, resolvi que queria fazer um site primeiro para a atlética e depois para o  centro acadêmico, organizei alguns eventos… e tentei me formar nesse meio tempo.

Quando me deparei com a parte "científica-acadêmica": iniciação científica e trabalho de graduação, senti uma imensa dificuldade. Óbvio que bateu a maior crise existencial: "Poxa, mas eu fiz tanta coisa nesses anos e não consigo escrever essa monografia! Não consigo ter uma bolsa de iniciação? Posso montar um site inteiro, mas não consigo entender o que estou fazendo nessa pesquisa...". Entreguei a monografia mesmo assim, fazendo como foi possível, levei várias puxadas de orelha de relator e orientador. Acabei optando por não ingressar num mestrado logo após a graduação, ao contrário da maioria dos meus colegas que seguiram na área, consegui uma bolsa de desenvolvimento tecnológico em um projeto no INPE e lá fiquei por 6 meses.


Ilustração: Joana Ho.

Nesse período tive oportunidade de (re-)ingressar na vida acadêmica, possibilidades de mestrado, tempo para estudar, poucas responsabilidades. Até tentava, mas não me animei. Ler artigos científicos e bolar um projeto com hipótese, metodologia e selecionar e citar referências me deixava ansiosa só de pensar. Demorei até aceitar que era possível que a ciência não encaixasse com as minhas habilidades e ambições, pelo menos nessa altura da minha vida.

No final do último ano de graduação e nesse período no interior consegui fazer uma graninha fazendo sites, habilidade que consegui desenvolver durante a graduação, depois de fazer a disciplina de introdução à lógica de programação. Na disciplina descobri que programar era algo que gostava muito e isso me levou a programar sites. Fazia isso por gosto, às vezes para tapar algum buraco, quando precisava de um site para um evento. Demorei muito até ver que poderia usar essa habilidade para pagar umas contas. Tive um grande amigo, que até hoje é meu parceiro no trabalho e na vida, que insistiu muito comigo até que pudesse enxergar que poderia fazer isso como profissional.

Tinha um lado de mim que me incomodou por muito tempo: “Estou fazendo oceanografia, não quero desperdiçar a graduação fazendo sites, que todo mundo pode fazer. Quero ser oceanógrafa!”. Porém, volta e meia aparecia alguém precisando dos “meus serviços”: fazer um site ali, organizar um evento aqui, ajudar com uma diagramação acolá… Na grande maioria todos essas pessoas eram do meio científico: professores universitários, pesquisadores, entre outros.

Demorou mais um tanto para que pudesse ver que fazendo isso não estava desviando da minha área de oceanografia. Foi um professor que me mostrou: “Atividades-meio importam”, ou seja, posso não estar fazendo a atividade-fim: pesquisa, publicações, livros, porém minha atuação (atividades-meio) ajudava que essas atividades-fim fossem desenvolvidas de uma forma melhor. Aí perdi a vergonha do meu trabalho!

A partir dessa conclusão, consegui me ver de uma forma mais definida como profissional, investir mais na minha capacitação, divulgar um pouco melhor o que fazia, etc. Desde então consegui uma colocação dentro de uma empresa onde aprendi muito, e recentemente optei por mudar meus caminhos indo para o terceiro setor.

Sobre Adriana:
Oceanógrafa, programadora web, viciada em ler, aprender e questionar, com mania de controle de tarefas, equipes e finanças de projetos, diretora do Instituto Costa Brasilis. Me apaixonei pelas diatomáceas ainda no colégio, achava que passaria o resto da minha vida trabalhando com esses minúsculos e quase invisíveis seres, mas não podia ignorar as coisas visíveis do meu dia-a-dia que achava importante realizar. Participei da A.A.A Oceanográfica, do Centro Acadêmico Panthalassa, encabecei O Escafandro (periódico feito pelos alunos da graduação do IOUSP), participei da organização de eventos científicos (SNO2010, SBO2011, Oceanos & Sociedade 2013, ISBS2015), fui gerente de Tecnologia de Informação e Comunicação na SALT e agora to tentando descobrir como viver no mundo das ONG’s, mas com saudades das minhas diatomáceas!

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Gramas Marinhas: Os canários do mar

Por Juliana Imenis, Juliana Nascimento, Larissa de Araujo, Natalia Pirani, Otto Müller e Paula Keshia
No início do século XX, era comum encontrar trabalhadores de minas de carvão carregando uma gaiola com um canário para o trabalho. Esta cena era tão frequente que acabou se tornando um clichê. Estas pequenas aves salvaram a vida de muitos mineiros, pois quando silenciavam era um sinal de alerta de um possível vazamento de gás. Um alarme soava e a mina era evacuada.
Podemos denominar esses canários levados às minas como bioindicadores, ou seja, organismos que nos indicam um possível problema ambiental, através de seu comportamento ou estado de saúde. O sacrifício dos canários felizmente ficou para trás, e hoje existem muitos outros bioindicadores que não precisam ser sacrificados para nos avisar sobre possíveis desastres.

Alguns organismos são extremamente sensíveis à poluição e às alterações do hábitat, e suas populações tendem a diminuir ou mesmo desaparecer assim que ocorrem modificações no ambiente. Outros, no entanto, são bastante tolerantes às más condições ambientais e muitas vezes apresentam um grande crescimento de sua população em locais onde a qualidade ambiental seria inadequada para a maioria das espécies. Um desses indicadores são as fanerógamas marinhas, também conhecidas como gramas marinhas (do inglês seagrass).


Ilustração de Joana Ho.
Este grupo bem particular de plantas cresce no fundo do mar, possui folhas alongadas e eretas e caules subterrâneos denominados rizomas, podendo viver inteiramente imerso na água, e está presente nas águas costeiras de praticamente todos os continentes. Apesar de serem conhecidas como “gramas marinhas”, este grupo está mais próximo dos lírios e gengibres do que das gramíneas (Figura 1). Compõe a dieta de peixes-bois e tartarugas e fornecem habitat para uma grande variedade de animais marinhos (Figura 2), alguns dos quais comercialmente importantes como peixes e crustáceos. Embora seja difícil quantificar, as gramas marinhas possuem um grande valor econômico agregado, estimado em até 2 milhões de doláres por ano. Também possuem a importante função de estocar carbono na sua biomassa e nos sedimentos, contribuindo como depósito de dióxido de carbono (CO2) do planeta, além de promoverem a reciclagem de nutrientes, proteção da costa e a melhoria da qualidade da água.


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Figura 1 - Morfologia e ocorrência no ambiente natural do gênero Halophila. Apesar de serem conhecidas como “gramas marinhas”, estes organismos estão muito mais próximos dos grupos dos lírios e gengibres do que das gramíneas terrestres. Adaptação do esquema de Sarah Lardizabal. Fonte:  http://www.reefkeeping.com/issues/2006-04/sl/-

Figura 2 - Diversos animais visitam os bancos de gramas marinhas à procura de alimento. 

No Brasil, apesar das informações serem controversas e da necessidade de estudos genéticos para se diferenciar corretamente as espécies, são reconhecidas, até o momento, cinco espécies de gramas marinhas (Figura 3): Halodule wrightii Ascherson; Halodule emarginata Hartog; Halophila baillonii Ascherson; Halophila decipiens Ostenfeld e Rupia maritima Linnaeus. As gramas marinhas são consideradas ótimas indicadoras da qualidade ambiental, pois são extremamente sensíveis às variações de luminosidade e disponibilidade de nutrientes.

No cenário atual de mudanças climáticas, vários impactos vem ocorrendo sobre o ambiente marinho, como o aumento das temperaturas médias globais da superfície oceânica, o aumento do nível médio do mar, a alteração do pH dos oceanos (acidificação da água) e alterações na circulação de correntes oceânicas. Essas são algumas das rápidas mudanças no ambiente marinho que têm sido evidenciadas pelos cientistas e suas consequências são ainda pouco compreendidas, pois muitos são os fatores envolvidos na interação entre o ambiente, as comunidades biológicas e os organismos que as compõem, sendo difícil a elaboração de previsões (Figura 4).

Figura 2.jpg

Figura 3 - A identificação das espécies de gramas marinhas é um pouco controversa, mas atualmente é definida a ocorrência de cinco espécies ao longo da costa brasileira. 

Fonte: Marques & Creed, 2008.




Figura 4 - Diversos estudos têm sido realizados neste rico ambiente, mas considerando sua importância e as prováveis mudanças ambientais que ocorrerão, é necessário um engajamento ainda maior dos pesquisadores. Fonte:  http://portuguese.alertdiver.com/Manguezais-e-Angiospermas-Marinhas

Como as gramas marinhas exigem condições ambientais específicas, como baixa turbidez e alta incidência de luz, estão sofrendo uma redução local ou até mesmo o desaparecimento total em algumas regiões, indicando que as mudanças ambientais globais e os impactos antropogênicos locais estão ocorrendo muito rapidamente e simultaneamente, não havendo tempo hábil para os organismos responderem às novas condições. A essa capacidade dos ecossistemas responderem aos impactos e retornarem as suas condições originais os cientistas denominam de resiliência. Alterações na biodiversidade dos ecossistemas podem reduzir a resiliência dos mesmos.

Embora o tipo e o grau do impacto possam variar de acordo com a localização geográfica das gramas marinhas, algumas hipóteses foram levantadas pela Rede de Monitoramento de Habitats Bentônicos Costeiros (ReBentos), sobre como as mudanças climáticas podem afetá-las: (1) o aumento da concentração de nutrientes, devido ao aumento da quantidade de chuvas, pode causar mudanças na composição da comunidade, favorecendo o aparecimento de espécies oportunistas, o que pode ser danoso para as espécies locais; (2) mudanças na temperatura superficial do mar podem afetar espécies tropicais, favorecendo a extensão e o deslocamento de seus limites de ocorrência em direção a latitudes mais elevadas; (3) eventos extremos, como cheias e tempestades, podem causar a redução e o desaparecimento das gramas marinhas de maneira brusca e rápida; (4) o aumento da quantidade de material de origem continental nos estuários pode afetar a abundância e a composição das comunidades, devido ao aumento da turbidez e mudanças na salinidade. Por outro lado, a redução de chuvas e/ou o aumento da penetração da água do mar em direção ao continente pode aumentar ou alterar a área de ocupação das gramas marinhas localizadas em área estuarinas; e finalmente (5) ondas de calor derivadas de eventos extremos por dias ou semanas podem reduzir ou mesmo dizimar bancos em áreas rasas.

Como exemplo de evidências que embasam estas hipóteses, podemos citar o estudo publicado na revista científica Journal of Experimental Marine Biology and Ecology pelos biólogos Ricardo Coutinho (Brasileiro) e Ulrich Seeliger, que em 1984 observaram que a espécie R. maritima, embora tolerante a condições eutrofizadas, foi sombreada por epífitas e macroalgas que cresceram devido ao excesso de nutrientes na água. Estes organismos se emaranham nesta espécie de grama marinha, causando redução de sua taxa fotossintética e aumentando o arrasto das mesmas, facilitando seu desprendimento quando sujeitas à ação de ondas e correntes. Outro exemplo, foi o estudo publicado na revista científica Marine Ecology por Frederick T. Short e colaboradores, que em 2006 observaram a redução de H. wrightii  por conta do movimento do sedimento, resultado de tempestades mais fortes e frequentes, que provocam o soterramento do banco e o desaparecimento da grama marinha.

Assim, como já mencionado por outros autores, podemos considerar as gramas marinhas como os “canários do mar”, em alusão aos canários das minas e à sua importância no diagnóstico da saúde do ambiente em que vivem e também como indicadores das mudanças climáticas que o planeta vem sofrendo. Certamente, a perda destes ecossistemas trará não apenas prejuízos econômicos, mas também a perda de um valor difícil de ser mensurado, que é o da biodiversidade no planeta.

Para saber mais:

COPERTINO, M.S.; CREED, J.C.; MAGALHÃES, K.M.; BARROS, K.V.S.; LANARI, M.O.; ARÉVALO, P.R.; HORTA, P.A. (2015). Monitoramento dos fundos vegetados submersos (pradarias submersas). IN: TURRA, A.; DENADAI, M. R.. Protocolos de campo para o monitoramento de habitats bentônicos costeiros - ReBentos, cap. 2, p. 17-47. São Paulo: Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/48874>. Acesso em: 04 nov. 2015.

COUTINHO, R. & SEELIGER, U. (1984). The horizontal distribution of the benthic algal flora in the Patos Lagoon Estuary, Brazil, in relation to salinity, substratum and wave exposure. Journal of Experimental Marine Biology and Ecology. 80:247-257.

MARQUES, L. V.; CREED, J. C.(2008). Biologia e ecologia das fanerógamas marinhas do Brasil. Oecologia Brasiliensis, v. 12, n. 2, p. 315 - 331.

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Sobre os Autores:
Juliana Imenis Barradas, CCNH-UFABC, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Evolução e Diversidade, bióloga, mestre em Zoologia (UFPB). juliana.imenis@ufabc.edu.br, http://lattes.cnpq.br/4843331968538355



Larissa de Araujo Kawabe, CCNH-UFABC, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Evolução e Diversidade, bióloga. http://lattes.cnpq.br/7133427266626274



Juliana Nascimento Silva, CECS-UFABC, graduanda em Engenharia Ambiental e Urbana (UFABC) http://lattes.cnpq.br/5975285955317582











Paula Keshia Rosa Silva, CCNH-UFABC, mestranda em Evolução e Diversidade (UFABC)
 http://lattes.cnpq.br/9557245804556650




Natalia Pirani Ghilardi-Lopes, CCNH-UFABC, professora adjunta, bióloga, doutora em Botânica (USP), http://lattes.cnpq.br/8457066927181345


Otto Müller Patrão de Oliveira, CCNH-UFABC, professor adjunto, biólogo, doutor em Zoologia (USP), http://lattes.cnpq.br/7304237172635774