quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Aquele “mato” chamado marisma

Por Alice Reis
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Marismas. Foto de Flickr @bonestitch
Marismas são vegetações herbáceas, um tipo de gramínea. Esse tipo de vegetação ocorre na região entre marés de estuários (região de encontro entre o rio e o mar).  As marismas ocorrem entre os limites de maré baixa e alta de sizígia (maré grande). Isso quer dizer que, quando a maré sobe, as marismas ficam submersas durante um tempo.
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Foto de uma folha de marisma coberta de pedras de sal excretadas. ©Sandy Richard
Por ser uma vegetação terrestre, e não aquática, ela possui adaptações fisiológicas para suportar a submersão. No entanto, não sobrevive se ficar mais que algumas horas submersa, e diferentes espécies possuem diferentes limites à submersão.  Por ocorrer em regiões estuarinas, onde a água é salobra, as espécies de marisma também possuem adaptações para lidar com a grande quantidade de sal presente. Algumas espécies possuem células responsáveis por excretar o sal e, em alguns casos, é possível ver pequenos cristais em suas folhas.
Esse tipo de vegetação possui diversas funções. Por ser uma vegetação costeira, ela protege a linha de costa da erosão, como ocorre quando o nível do mar sobe ou quando uma tempestade mais forte atinge a costa. As marismas também têm função de refúgio para pequenos organismos, como juvenis de peixes (quando a maré sobe) e crustáceos. Por exemplo, pequenos caranguejos utilizam a vegetação para se esconder de aves e se proteger do Sol durante a maré baixa.
Um papel importante das marismas diz respeito à sua relação com os manguezais. Os manguezais ocorrem na região tropical e as marismas ocorrem na região temperada. Um lugar famoso pelas grandes marismas é a Lagoa dos Patos (que na verdade é uma laguna, já que possui conexão direta com o mar e água salobra) no Rio grande do Sul. Apesar de predominar em regiões diferentes do globo, as marismas também ocorrem na região tropical, somente onde o mangue não consegue colonizar. No entanto, estudos recentes vêm mostrando que as marismas estabilizam o sedimento e permitem que o mangue passe a colonizar essas regiões que antes não seria capaz, a isso se dá o nome de sucessão ecológica. Esse conhecimento mostra que as marismas podem ter um papel importante no processo de colonização dos mangues. Por isso  diversos pesquisadores começaram a fazer experimentos para testar se esse tipo de vegetação pode ser um facilitador para colonização de mangue, e assim, poder ser utilizado para auxiliar no reflorestamento de manguezais que foram desmatados.

Foto de um fragmento de marisma na borda do manguezal. É possível ver pequenas árvores de mangue crescendo em meio às marismas. ©Alice Reis

Estudos recentes do Laboratório de Ecologia Bentônica da Universidade Federal da Bahia vêm coletando informações preliminares sobre as marismas da região tropical, mais especificamente no estuário do rio Jaguaripe na Bahia. Quem sabe num futuro próximo não estaremos reflorestando florestas de mangue com a ajuda dessa gramínea?


Para entender mais sobre o assunto:
1. Schaeffer-novelli, Y. 1999 Grupo de ecossistemas: manguezal, marisma e apicum.  119.
2. Silvestri, S., Defina, A. & Marani, M. 2005 Tidal regime, salinity and salt marsh plant zonation. Estuar. Coast. Shelf Sci. 62, 119–130. (doi:10.1016/j.ecss.2004.08.010)
3. McKee, K. L., Rooth, J. E. & Feller, I. C. 2007 Mangrove Recruitment After Forest Disturbance Is Facilitated By Herbaceous Species in the Caribbean. Ecol. Appl. 17, 1678–1693. (doi:10.1890/06-1614.1)


Sobre Alice Reis:

Alice ama a Oceanografia por ser uma profissão multidisciplinar, que integra diferentes áreas de estudo dos oceanos, e por isso possibilita enxergar os oceanos de forma abrangente. Durante a graduação, estudou Biologia Marinha na Università di Pisa, Itália. Foi bolsista PIBIC no período de 2012-2013, no Laboratório de Ecologia Bentônica (LEB), com ênfase em Interação entre os Organismos Marinhos e Ecologia de Ecossistemas. Formou-se em oceanografia pela UFBA em 2016. Atualmente, Alice está se preparando para o mestrado em Ecologia para continuar estudando o papel das marismas tropicais como refúgio.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Um novo lar para o Nemo

Por Cathrine Boerseth



Ninguém gosta de ter sua casa destruída, isso inclui as pessoas e os animais. Ursos não gostam, pássaros não gostam, peixes não gostam e até mesmo o menor animal planctônico, que às vezes até esquecemos que existe, não gosta de ter o seu lar destruído.  Alguns desses animais planctônicos são na verdade meroplanctônicos, ou seja, flutuam ao sabor das correntes apenas nos estágios iniciais do seu ciclo de vida, e para se tornarem adultos precisam assentar em algum lugar: um bom lar, com uma boa base. Para muitos organismos essa boa base seria um superfície dura, como um costão rochoso ou um recife de coral.

Infelizmente, na costa norte do estado do Paraná muitas dessas superfícies duras (que já são raras) são constantemente destruídas por métodos de pesca destrutivos, como o arrasto de camarão. As larvas do meroplâncton estão flutuando pelo oceano, mas há poucos lugares para elas assentarem. No mundo biológico um fato sempre afeta o outro : peixes se alimentam de organismos que vivem em ou perto de substratos rochosos, assim a falta de um habitat rochoso apropriado para o assentamento de larvas do meroplâncton significa menos alimento disponível para os peixes, e como consequência diminui o tamanho dos estoques pesqueiros.

Mas, e se a gente construísse casas novas para esses animais? E se essas casas fossem tão fortes que os arrastos não fossem capazes de destruí-las? Pois bem, foi exatamente isso que pesquisadores fizeram entre 1997 e 2003 na costa do Paraná, construindo alguns recifes artificiais. Recifes artificiais são estruturas feitas pelo Homem, que podem ser  de rochas, blocos de concreto ou até mesmo navios, que possuem uma variedade de buracos e fissuras e são afundadas no oceano, provendo abrigo para os mais diversos organismos marinhos. Bactérias e algas são geralmente os primeiros organismos a chegarem, seguidas pelas larvas do meroplâncton que assentam e se desenvolvem em uma infinidade de animais, de anêmonas a caranguejos. Essa variedade de animais atraem os peixes que estão em busca de alimentos, e esses peixes vão, consequentemente, atrair outros peixes maiores e/ou outros predadores. Passado algum tempo,  o ecossistema do recife artificial passa a ser um lugar com alimento disponível e proteção para um grande número de organismos marinhos.


Os recifes artificiais no Paraná foram feitos de cubos de concreto com buracos em forma de um trevo de quatro folhas, disponibilizando um local para os animais se esconderem ou assentarem.

Porém, mesmo depois da construção do recife artificial, um monte de questões continuavam sem resposta: os organismos meroplanctônicos vão realmente assentar no local? Eles vão  atrair peixes? Esses peixes vão usar a área para reprodução? O ecossistema resultante será parecido com um recife rochoso natural? A resposta para as duas primeiras questões é um grande SIM, mas as outras perguntas ainda precisavam de respostas, e foi exatamente isso que eu resolvi pesquisar.

Para responder essas questões, decidimos estudar ovos e larvas de peixes. Para amostrá-los usamos uma rede presa a uma scooter subaquática (legal né?!) e uma armadilha de luz (veja fotos). Com esses métodos fui capaz de amostrar larvas e ovos que estavam bem perto do recife artificial, sendo que a rede capturou os ovos e as larvas em estágios iniciais de desenvolvimento, enquanto a armadilha capturou larvas maiores. Nós também amostramos a uma certa distância do recife (seria a abundância do ictioplâncton diferente lá?) e em  um ambiente recifal rochoso natural nas redondezas (o lindo arquipélago de Currais). As amostras foram realizadas em meses entre julho de 2014 a abril de 2016, sempre que as condições climáticas e de ondas permitiam.























A armadilha de luz (esquerda) e a rede fixada na scooter subaquática (direita).




O arquipélago de Currais, localizado na costa do Paraná. 

Então, o que os nossos dados nos mostraram?

O número de ovos e larvas de peixes foi maior no recife artificial do que a uma certa distância dele. Além disso, o fato das amostras conterem ovos ou larvas recém eclodidas significa que os peixes estão usando o recife artificial ou uma área bem próxima a ele, para a reprodução. Nossos dados ainda mostraram que muitas larvas coletadas no recife artificial pertencem a espécies que habitam naturalmente recifes rochosos e espécies pelágicas, que vivem em águas oceânicas. E o que isso significa? Significa que o recife artificial está começando a agir como um recife natural (ótimo!), mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Os peixes ainda são mais abundantes no recife natural e muitos são apenas “visitantes”, como espécies pelágicas. Porém todos são bem vindos! O recife artificial provém comida e proteção para todos! Os visitantes pelágicos são atraídos pela comida e assim se tornam a comida de outros peixes. Mas não se preocupe, isso é ótimo, pois é assim que um ecossistema funciona!

Pode até parecer que os recifes artificiais são a solução para todos os nossos problemas, e você deve estar querendo levantar sua mão para o céu e gritar: vamos construir recifes artificiais em todos os mares, no mundo todo! Mas infelizmente como a maioria das coisas da vida, isso não é tão simples. Há muitos fatores a serem considerados, uma vez que a construção de um recife artificial é uma intervenção humana na natureza  e pode causar mais prejuízos do que benefícios. Por isso, uma pesquisa cuidadosa em cada situação é mais que necessária!




E o que aprendemos com tudo isso? A natureza acha o seu jeito! Nós humanos somos  destrutivos e para construir nossas próprias casas, destruímos os lares de outros seres. Felizmente, muitos ecossistemas são resilientes e voltam à vida. Recifes artificiais podem até não ser a resposta para todos os nossos problemas, mas na costa do Paraná,  um pequeno ecossistema destruído está se reconstruindo graças a eles!
  
Sobre Cathrine:
Bióloga, atualmente me preparando para defender minha dissertação de mestrado em Oceanografia Biológica na USP. Sou Norueguesa e me apaixonei pelo mar mergulhando nas águas congelantes do norte. Moro no Brasil há quatro anos e não vejo a hora de descobrir onde a vida vai me levar daqui para a frente. O que eu sei com certeza é que eu quero trabalhar e viver em proximidade com a natureza, seja nos trópicos lindos do Brasil ou no Ártico maravilhoso da Noruega (ou em algum lugar entre os dois). 



quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Como pequeninos animais no oceano influenciam o dióxido de carbono atmosférico?

Por Emma Cavan

O importante papel de pequenas (<5mm) plantas e animais no oceano não é tão conhecido pelo público como o dos animais carismáticos, que a mídia prefere chamar de “fofinhos” (“cuddly”, em inglês), como golfinhos e baleias. São chamados de plâncton os organismos (tanto plantas como animais) que não conseguem nadar contra as correntes, seu tamanho varia desde algas microscópicas à grandes águas-vivas.

Minha pesquisa é focada na bomba biológica de carbono, descrito por Yonara Garcia em um post prévio “A fertilização dos oceanos e as mudanças climáticas”, de maio de 2016. A bomba biológica de carbono descreve como o fitoplâncton (plantas) e o zooplâncton (animais) sequestram dióxido de carbono da atmosfera para o oceano profundo. Meu interesse é desvendar como esses organismos transportam carbono orgânico (em forma de partículas) na camada superior do oceano (primeiros 500 m).


Foto de crustáceo zooplanctônico de
aproximadamente 0,5 mm em comprimento.
Foto da autora.

O zooplâncton varia desde pequenos crustáceos (parecidos com camarões) até organismos muito maiores, como salpas e águas-vivas. Vou me concentrar aqui apenas nos crustáceos. Dentre eles está o krill, um grupo de organismos zooplanctônicos muito conhecido. Eles são considerados grandes (2-5 mm) para seu grupo e são encontrados abundantemente no Oceano Austral, onde  são presas de grandes baleias como as jubarte. O zooplâncton influencia na quantidade de carbono orgânico (originalmente fotossintetizado pelo fitoplâncton na superfície dos oceanos) que atinge o mar profundo, uma vez que organismos do plâncton:
1- Respiram o carbono inorgânico
2- Ingerem o carbono orgânico e liberam uma parte deste em forma de pelotas fecais (cocô de plâncton).
3- Quebram partículas em pedaços menores

Para complicar ainda mais o processo, o zooplâncton pode migrar verticalmente centenas de metros por dia. Então  podem se alimentar na superfície à noite e depois descer a maiores profundidades para liberar pelotas fecais, aumentando o volume de carbono que chega ao oceano profundo e fica longe da atmosfera. Por essa razão, o zooplâncton é particularmente difícil de representar em modelos biogeoquímicos! Tenho ido ao mar no oceano Antártico l e no Pacífico equatorial buscando descobrir como o zooplâncton age na transferência de carbono orgânico para o mar profundo.

Oceano Antártico

No oceano Antártico, na Ilha Elefante. Ao fundo,
onde Ernest Shackleton desembarcou
.
Trabalhar neste ambiente é uma experiência fantástica. Deve ser um dos lugares mais bonitos do planeta. Ficávamos  cercados de muitos pinguins todos os dias! Voltando à ciência… como eu disse, no oceano Antártico há um grande número de crustáceos pertencentes ao zooplâncton, como krill e copépodes. Eles são dominantes nas águas gélidas em torno da Antártica, mas sua ocorrência é muito fragmentada, como manchas (não são espalhados homogeneamente).


Pelota fecal, 0,3 mm em comprimento.
Foto da autora.
Lá eu coletei partículas orgânicas que estavam afundando (cheias de carbono), em sua maioria pelotas fecais do zooplâncton (e não detritos fitoplanctônicos). Isso sugere que a maior parte do carbono orgânico que chega no fundo oceânico é via zooplâncton, que se alimenta de fitoplâncton e libera pelotas fecais. Notou-se que a quantidade de zooplâncton afeta o número de partículas que afundam a partir da superfície do oceano. Além disso, se o zooplâncton alimenta-se de fitoplâncton fresco (pelotas fecais marrons), de detritos ou de suas próprias fezes (pelotas fecais brancas – e sim, eles comem seu próprio cocô!), isso afeta quão eficientemente o carbono orgânico chega ao oceano profundo! Então, essas criaturinhas têm um papel importante aqui, na transferência de carbono orgânico da superfície do mar para o fundo.


Pacífico equatorial

Trabalhar aqui foi muito diferente do que trabalhar no Oceano austral. É um ambiente muito quente e quase não vi nuvens durante todo o cruzeiro. Estávamos trabalhando na costa pacífica da Guatemala. Há muito menos vida marinha aqui, mas eu pude ver um monte de tartarugas e até um tubarão raposa!

RRS (Royal research ship) James Cook no porto de Panamá antes do cruzeiro. Foto da autora.

Comparado ao oceano Antártico l, o Pacífico equatorial é muito estável, com poucas variações sazonais. Mas, ao mesmo tempo, entre 100-1000 metros de profundidade, as baixas concentrações de oxigênio tornam-se um obstáculo, o que faz com que os organismos fiquem sem oxigênio suficiente nessas profundidades. Zonas de oxigênio mínimo (ZOM) são comuns no planeta, particularmente perto de costas como a do Peru e a  costa oeste da África. Muitos estudos mostram que, nas ZOM, maiores proporções de carbono orgânico atingem o fundo, quando comparadas ao resto do mundo. Mas a razão para isso ainda é desconhecida, então fui ao mar para tentar descobrir.

Há duas razões principais que fazem com que o carbono orgânico não atinja o oceano profundo:
1- Ele é consumido e respirado pelo zooplâncton
2 – ou é hidrolisado por bactérias


Sistema de micro-respiração usado para medir
a respiração bacteriana em partículas.
Um sensor de oxigênio (azul) é inserido em
pequenos frascos que contêm partículas,
para medir as concentrações de oxigênio
por algumas horas. Foto da autora.

Então eu quis testar se a remineralização bacteriana (o processo de converter carbono orgânico de volta à carbono inorgânico, como dióxido de carbono) é reduzido em ZOMs devido ao limitado metabolismo bacteriano em zonas de baixa concentração de oxigênio. Para tanto, medi a taxa de respiração de micro-organismos  em partículas, e o resultado mostrou que estes são muito bem adaptados a lidar com as condições de pouco oxigênio e são responsáveis pela maior parte da degradação de carbono orgânico!



Isso mostrou que é provável que uma redução na respiração zooplanctônica e o processamento de partículas na ZOM devem ser os porquês do alto depósito de carbono orgânico ao fundo oceânico. Essa é uma hipótese razoável, já que estudos mostraram que a abundância de zooplâncton é baixa em ZOMs e que seu metabolismo é bem reduzido. O ciclo de vida de bactérias é bem mais curto do que o do zooplâncton, então elas podem se desenvolver muito mais rápido em condições desafiadoras. Então, no Pacífico equatorial, a ausência de zooplâncton significa que mais carbono chega ao oceano profundo e não é devolvido à atmosfera.

Resumindo, o zooplâncton têm uma relação complicada com o carbono no oceano. A presença ou ausência de ambos pode aumentar a quantidade de carbono que chega ao oceano profundo, dependendo somente de qual ecossistema oceânico eles fazem parte. É por isso que é complicado modelar os efeitos do zooplâncton no ciclo de carbono e são necessárias mais pesquisas para entender melhor como isso acontece. Mas devemos nos lembrar que os animais pequeninos influenciam, e muito, na quantidade de carbono que existe na atmosfera. Quem diria?

Sobre Emma:

Emma é uma bióloga marinha que tornou-se oceanógrafa biológica (o que significa, basicamente, ser uma bióloga marinha focada em pequenos organismos!). Cresceu na costa sul da Inglaterra e sua graduação e doutorado deu-se no Centro Nacional de Oceanografia da Universidade de Southampton. Acabou recentemente seu doutorado e quer continuar na academia, fazendo pesquisas. Emma se interessa muito em conectar ciência e política, passou 3 meses trabalhando no centro de ciências políticas na Royal Society em Londres. Fora o lado científico, Emma gosta de viajar sempre que possível e tem sido capaz de fazê-lo tanto para lazer quanto para trabalho. Também adora passear de caiaque, acampar, ler, cochilar e socializar. Siga-a no twitter (@emma_cavan) ou visite http://emmacavan.wix.com/emmacavan