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quinta-feira, 30 de março de 2017

O Mar Também É História

Por: Alynne Almeida Affonso


Ilustração: Silvia Gonsales
É muito comum encontrarmos a oceanografia dividida em quatro grandes áreas: Física, Química, Geológica e Biológica. Essa abordagem pode ser bastante pertinente quando consideramos metodologias práticas e eficientes para estudar ciências complexas, como a Oceanografia. Segmentar o saber facilita ainda a produção de conhecimento, a pesquisa e o ensino, já que é uma forma de classificar e organizar grandes volumes de informação.
No entanto, fica o questionamento: será que tudo o que se refere às Ciências do Mar se enquadra nessa divisão em quatro grandes áreas? Sendo a Oceanografia uma ciência bastante multi e interdisciplinar, é quase natural supor que muitos assuntos relacionados aos oceanos acabem ficando à margem dessa divisão clássica. É o caso da Oceanografia Humana. Não é muito comum pensarmos nas Ciências do Mar como uma ciência humana, mas os mares e oceanos têm, sim, uma componente significativa nas ciências sociais. O que faz bastante sentido se pararmos para pensar na zona costeira e na influência que o mar exerce e já exerceu na sociedade.
Nem sempre a pesquisa em Oceanografia Humana é classificada como Oceanografia propriamente dita, e isso se deve, possivelmente, à melhor adequação de muitos temas estudados na oceanografia como “ciências duras” (ou, em inglês, hard sciences) – ou seja, rígida em suas fundamentações teóricas e em sua capacidade preditiva. As ciências duras seguem à risca o que, em ciência, se conhece como Método Científico, que é a coleção e observação de dados quantificáveis, aplicação de modelos matemáticos e uso de experimentos controlados, produzindo resultados com grande grau de acurácia. Já as ciências humanas e sociais são classificadas como “ciências moles” (sei que o nome é esquisito, mas vem do inglês soft sciences), preocupadas em investigar o comportamento humano e da sociedade. Estes assuntos podem ser bastante subjetivos, baseados em interações complexas que não se encaixam na abordagem de estudo prevista pelo Método Científico, já que se torna muito difícil estabelecer um critério de análise tão sólido para temas tão abstratos.
As ciências sociais podem cruzar o caminho das ciências do mar de muitas formas. A pesquisa na interface entre oceanografia e ciências humanas está bastante focada na compreensão da dinâmica entre as comunidades costeiras e o meio ambiente, uso dos recursos costeiros, uso e ocupação do território costeiro, conflitos ambientais e valoração. Mas, será que alguém se preocupa em estudar o mar em sua componente histórica? Afinal, História é uma das bases das ciências humanas e sociais. O passado, afinal, é a chave para o presente.
E a resposta é: SIM! Existe uma ciência toda dedicada ao tema. A História Ambiental é uma disciplina relativamente recente, é verdade, que surgiu nos Estados Unidos durante a onda ambientalista dos anos 60 e 70, e é definida por OOSTHOEK (2005) como “o estudo da interação entre humanos e o meio ambiente no passado. A história ambiental estuda as relações entre humanos e ambiente ao redor, procurando compreender como a interação entre ambos funciona”. A História Ambiental esmiúça o papel da natureza na influência das atividades humanas e em como os humanos moldam o meio ambiente ao longo do tempo.
As Zonas Costeiras são suscetíveis a mudanças bruscas e rápidas na sua configuração, induzidas tanto por processos naturais como por pressão antrópica – inclusive, para muitas zonas costeiras ao redor do mundo, a componente humana é a principal forma de alteração do espaço costeiro. O conhecimento histórico, através de uma leitura das questões da natureza, permite verificar a percepção histórica das mudanças ambientais. É possível assimilar as relações entre espécie humana e fatores naturais e investigar as interações entre cultura, natureza e interações entre homem e zona costeira no passado e através do tempo humano. Entender o passado é essencial para modelar e prever o futuro, e aí reside a grande importância da história ambiental.
A interpretação histórica das questões ambientais permite a conexão entre geografia física, topografia, geomorfologia costeira a fatores climáticos, oceanográficos e biológicos, aliados a uma perspectiva política, econômica e sociológica. No entanto, é importante analisar as interpretações das ações humanas no mundo natural no passado às mudanças associadas a estes fenômenos com bastante cuidado, porque os problemas que ocorrem no presente podem influenciar a nossa percepção do passado e como interpretamos os acontecimentos pretéritos.
A História Ambiental, no entanto, é muito mais que apenas apontar as interações danosas entre sociedade e natureza. Ela trata de interpretações históricas de problemas ambientais, incorporando mudanças que se apoiam na pluraridade das dimensões naturais e culturais relativas às atividades humanas e às diversas formas de percepção do ambiente e sua relação com a vida em sociedade.
Uma forma muito eficiente e que tem sido aplicada com bastante frequência para o estudo da História Ambiental é o uso do Sistema de Informações Geográficas (SIG, ou GIS em inglês). O HGIS (ou Historical Geographical Information System do inglês, algo como Sistema de Informações Geográficas Histórico) é uma ferramenta eficiente porque o uso de mapas históricos georreferenciados (ou seja, associados à informações espaciais como coordenadas geográficas) e digitalizados é uma forma visual, qualitativa e quantitativa de observar mudanças ambientais ao longo do tempo, e amplamente utilizada pelos pesquisadores da História Ambiental (Figura 1). Através do HGIS é possível também armazenar, exibir e analisar dados do passado relativos ao meio ambiente e correlacionar os dados espaciais históricos com informações quantitativas como censos e pesquisas sociais realizadas por prefeituras, órgãos públicos e universidades (Figura 2). Essas informações permitem, além da reconstrução de ambientes pretéritos, a observação de mudanças dos parâmetros ao longo do tempo.  
Figura 1: Um exemplo de mapa histórico digitalizado e inserido num Sistema de Informações Geográficas Histórico (HGIS). Retirado de RUMSEY & WILLIANS (2002).

Figura 2: Mapa histórico digitalizado e, a este, adicionado pontos com informações quantitativas não visuais (em forma de tabela) através do HGIS. Retirado de RUMSEY & WILLIANS (2002).

É o que autores como DONAHUE (2007), CUNFER (2006), TUCCI (2010) fizeram, para citar apenas alguns. DONAHUE e CUNFER usaram mapeamentos históricos e estatísticas de uso do solo para avaliar as condições ambientais e alterações de longo prazo na paisagem induzidas por atividades de agricultura no território norte-americano. Já TUCCI, através da análise de mapas históricos de Milão, acompanhou mudanças na paisagem urbana e nos parâmetros sócio-econômicos, representativos de períodos históricos específicos, e comparou com as características atuais a fim de detectar padrões de evolução da malha urbana ao longo do tempo. Alguns autores como DeBOER & CARR (1969), CHARDON (1982), CLUTTON (1982), LLOYD et al. (1987), HESSLER (2005), além da jovem pesquisadora que aqui vos escreve, escolhemos a zona costeira como alvo dos estudos em História Ambiental. Estes autores reconstruíram, através de mapas históricos e estatísticas, as zonas costeiras alvo de seus estudos e compararam com mapas e índices atuais, a fim de acompanhar a evolução da paisagem e do comportamento do homem em relação ao ambiente (Figura 3).
Figura 3: Linhas de costa de diferentes períodos históricos, digitalizadas em HGIS e comparadas com uma linha de costa atual. Retirado de LLOYD & GILMARTIN (1987).

Existem muitos métodos para se efetuar as análises temporais dos ambientes pretéritos, que em geral, são bastante complexos. Dificilmente um autor repete a metodologia de outro passo a passo, já que as peculiaridades das áreas de estudo e objetivos da pesquisa fazem com que os pesquisadores tenham que adaptar as metodologias às suas realidades. Em minha pesquisa de mestrado, por exemplo, eu avaliei as mudanças na paisagem da Baixada Santista ao longo de 4 séculos. Desenvolvi minha própria metodologia de análise, uma vez que a maioria dos autores que eu pesquisei, por serem de fora do Brasil, não ofereciam soluções que eu pudesse aproveitar integralmente. Adaptei técnicas de muitos autores para, no fim, desenvolver algo que funcionasse para o litoral de São Paulo e para o que eu buscava compreender.
E esse é o tema do meu próximo artigo para o Bate Papo com Netuno! Vou explicar como se faz essa análise histórica usando mapas antigos, as curiosidades e peculiaridades da cartografia histórica, e mostrar o que eu encontrei para a região de Santos, litoral de São Paulo. Aguardem!

Referências
CHARDON, R. 1982. A Best-fit Evaluation of DeBrahm's 1770 Chart of Biscayne Bay. The American Cartographer. 1982, Vol. 9, pp. 47-67.
CLUTTON, E. 1982. Some Seventeenth Century Images of Crete: A Comparative Analysis of the Manuscript Maps by Francesco Basilicata and the Printed Maps by Marco Boschini. Imago Mundi. 1982, Vol. 34, pp. 48-65.
CUNFER, G. 2006. On the Great Plains: Agriculture and Environment. Environmental History. 1, 2006, Vol. 11, pp. 142-144.
DeBOER, G. e CARR, A. P. 1969. Early Maps as Historical Evidence for Coastal Change. Geographical Journal. 1969, Vol. 135, pp. 17-39.
DONAHUE, B. 2007. The Great Meadow: Farmers and the Land Colonial Concord. Yale : Yale Publisher Press, 2007.
HESSLER, J. 2005. Warping Waldseemüller: A Cartometric Study of the Coast of South America as Portrayed on the 1507 World Map. MAGERT Ala Map and Geography Roundtable. [Online] 2005. http://purl.oclc.org/coordinates/a4.pdf accessed in 01/06/2016.
LLOYD, R. e GILMARTIN, P. 1987. The South Carolina Coastline on Historical Maps: A Cartometric Analysis. The Carographic Journal. 1, 1987, Vol. 24, pp. 19-26.
OOSTHOEK, K.J. 2005. What is Environmental History? ENVIRONMENTAL HISTORY RESOURCES. [Online] 03 de January de 2005. [Citado em: 17 de 05 de 2016.] https://www.eh-resources.org/what-is-environmental-history/.
RUMSEY, D., WILLIAMS, M. 2002. Historical Maps in GIS in Past Time, Past Place: GIS for History. Ed KNOWLES, A.K. ESRI Press, pp.2-18.
TUCCI, M., GIORDANO, A. e RONZA, R. W. 2010. Using Spatial Analysis and Geovisualization to Reveal Urban Changes: Milan, Italy, 1737-2005. Cartographica. 1, 2010, Vol. 45, pp. 47-63.

Sobre a autora :
Alynne Almeida Affonso, 32 anos, Oceanógrafa pelo IOUSP e mestra em Sistemas de Informação Geográficas e Sensoriamento Remoto pela University College Cork (Irlanda). Depois de muito estudar oceanografia geológica, sedimentação marinha, sistemas e processos costeiros, manejo costeiro e aprender a fazer todo tipo de mapas e interpretar imagens de satélite, vive numa busca eterna por uma carreira na interface entre ciências exatas, humanas e sustentabilidade.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Importância e curiosidades das coleções científicas

Por Jana M. del Favero

Entre o fim do mestrado e o começo do doutorado fiz uma pausa de um ano e meio na qual participei da montagem da Coleção Biológica Prof. Edmundo F. Nonato - ColBio, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (http://www.io.usp.br/index.php/infraestrutura/colecao-biologica). Foram meses verificando frascos com algum tipo de material biológico, entre peixes, zooplâncton, otólitos, e digitando todas as informações sobre os mesmos no computador, como datas de coleta, locais, profundidades de coleta, o tipo de amostrador usado, a embarcação etc. Foi durante esse período que percebi a importância das coleções científicas, que preservam materiais cuidadosamente coletados para diversos fins, possibilitando inúmeras pesquisas. 

Sou suspeita para falar, pois foi durante esse período trabalhando na coleção que observei que havia amostras de ovos e larvas de uma espécie de peixe (Engraulis anchoita) durante vários anos, desde 1974 até 2010, o que me possibilitaria uma análise da distribuição e abundância desses organismos  em um longo período de tempo, verificando a influência de fatores ambientais que não podemos analisar com poucos meses de coleta. Citando o que a Silvia Gonsales (nossa ilustradora) me disse, “as coleções armazenam peças com informações relevantes de um quebra-cabeça a ser montado e desvendado pelos pesquisadores”. É por isso que quando ocorre algum acidente, como o incêndio do Instituto Butantã em 2010, não são apenas cobras já mortas que se perdem, mas sim informações relevantes, insubstituíveis, que deixarão buracos nesses quebra-cabeças, que podem se tornar impossíveis de serem montados. 



Fig. 1: Organismos preservados depositados no ColBio. Foto: Gabriel Monteiro.

Outra grande importância das coleções biológicas é a economia financeira que podem proporcionar. Muitas vezes não nos damos conta  do alto custo de uma saída de campo para uma instituição ou para uma agência financiadora do projeto. A saída fica ainda mais cara se para a realização da mesma for necessário o uso de algum navio de pesquisa, principalmente se a área estudada for muito afastada da costa ou muito grande! Eu mesma, no meu projeto de doutorado não gastei um real com coletas, graças ao material guardado no ColBio.

Agora suponhamos que você faz um trabalho no qual quer saber quais espécies de peixes ocorrem em uma certa região. Você identifica as espécies e na hora da publicação, ou em algum outro momento, algum pesquisador o questiona se você identificou corretamente a espécie X. Se a sua espécie X tiver ao menos um indivíduo depositado (guardado) em alguma coleção biológica, o pesquisador questionador pode analisar por si mesmo o “espécime-testemunho”, ou seja, o indivíduo por você depositado, e comprovar a identificação daquela espécie. 

Ou até mesmo quando você está identificando um indivíduo coletado e tem dúvidas quanto à sua classificação. Nessa hora não há nada melhor do que consultar uma coleção científica e analisar as possíveis espécies que seu indivíduo parece pertencer. Incontáveis vezes fui ao Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo-MUZUSP (http://www.mz.usp.br) durante o meu mestrado para ver indivíduos depositados na coleção ictiológica (de peixes). Se vocês achavam que o museu de uma universidade ou de ciências só tem aquela parte de exposição onde os visitantes circulam livremente, engana-se! Muito maior, e na minha opinião mais importante, são as coleções científicas. 

Ah, e se esse museu arquivar o holótipo então, a coleção torna-se ainda mais preciosa. Holótipo ou espécime-tipo é o indivíduo que o pesquisador designou como base no momento da descrição de uma nova espécie. E sim, estamos constantemente descobrindo novas espécies e designando novos holótipos, principalmente no oceano, ainda tão pouco explorado! 

Explorando o banco de dados do Museu de História Natural de Londres, achei diversos holótipos do Brasil, dentre os quais  citarei um que me chamou a atenção:  uma espécie de esponja (leia mais sobre esponjas aqui) coletada em 1996 na região de São Sebastião, SP. Aos curiosos de plantão segue o link da coleção científica do Museu de História Natural de Londres (http://data.nhm.ac.uk). Eu particularmente achei demais ficar pesquisando espécimes coletados por Darwin, Linnaeus, de exemplares coletados no Brasil, que hoje estão guardados em outro continente! 

É importante esclarecer que o holótipo nem sempre precisa ser o indivíduo inteiro, principalmente no caso de espécies extintas, cuja descrição é muitas vezes baseada em fósseis (por exemplo, um holótipo de um dinossauro descrito pode ser o fêmur do mesmo). Em alguns casos o holótipo pode até ser uma ilustração! 



Fig. 2: Holótipo de Marocaster coronatus, uma espécie de estrela-do-mar extinta. O material está depositado no Muséum de Toulouse, França. Fotógrafo: Didier Descouens.



Fig. 3: Desenhos científicos mostrando 3 estágios larvais de uma espécie de peixe. (Ilustração: Silvia Gonsales).
E por falar em ilustração, a Silvia Gonsales fala rapidamente em seu perfil aqui do blog sobre a importância das ilustrações científicas: “o desenho ajuda os pesquisadores a representarem e/ou explicarem suas ideias com algo além de palavras. Por exemplo, quando uma espécie nova é descoberta, alguém precisa descrevê-la, ou seja, fazer um registro exato de como ela é. O desenho científico complementa e sintetiza esse registro, mostrando todas as suas características importantes que, muitas vezes, não aparecem claramente em fotografias”. Assim, o desenho da espécie descrita auxilia, e muito, os pesquisadores na identificação de uma espécie ou até mesmo do estágio de desenvolvimento no qual  ela se encontra. No seu Trabalho de Conclusão de Curso, Silvia Gonsales utilizou desenhos científicos para descrever e caracterizar as fases larvais de uma espécie de peixe (vejam o desenho abaixo como exemplo de 3 estágios). E no post da Claudia Namiki ela mostra como o desenho científico foi utilizado para descrever otólitos (veja aqui). Os originais dos desenhos científicos também ficam depositados em coleções científicas, disponibilizados para consulta de pesquisadores.

O desenho é fácil de ser arquivado e guardado por muito tempo, mas como são guardados os outros materiais? Bem, tudo depende do que está sendo depositado. Os otólitos e ossos apenas precisam estar limpos e etiquetados para serem depositados, as amostras de plâncton normalmente encontram-se em  frascos de vidro preservadas em formaldeído 4% e peixes em álcool 70%. Plantas são prensadas, secas em estufas e fixadas em cartolina, chamadas exsicatas, como as da coleção que há no Jardim Botânico de São Paulo (http://botanica.sp.gov.br/curadoriadoherbario) e no do Rio de Janeiro (http://www.herbariovirtualreflora.jbrj.gov.br/jabot
/herbarioVirtual/ConsultaPublicoHVUC/ConsultaPublicoHVUC.do). Há também a taxidermia, conhecida popularmente como a atividade de “empalhar”, pois antigamente se utilizava palha para preencher a pele do animal que estava sendo montado. Hoje em dia, usa-se um material semelhante às fraldas, como os animais taxidermizados do  Museu de Pesca de Santos (http://www.pesca.sp.gov.br/museu.php). Aposto que muitos aqui nunca pensaram que o animal “empalhado” poderia também ser usado a favor da ciência, não somente utilizado por caçadores para ficar expondo animais em sua sala de estar (credo!).


Fig. 4: Exemplo de peixes fixados em álcool 70%, de aves marinhas taxidermizadas, do esqueleto de uma ave montado (Fotos: Jana M. del Favero) e de uma exsicata (Foto: Richieri Sartori). 

Uma das coleções que conheci que mais me fez brilhar os olhos foi a coleção de vidro de flores e de invertebrados marinhos da Universidade de Harvard, parte exposta no Museu de História Natural e no Museu de Zoologia Comparada, da própria universidade. Ambas as coleções foram inicialmente criadas para serem utilizadas em salas de aula, uma vez que nem a planta prensada e nem o animal fixado mostram como o organismo realmente é (na fixação, principalmente de invertebrados, o animal perde a cor e pode deformar). No caso do organismo de vidro, mesmo estando muito perto, eu juraria que era de verdade, e olha que os modelos foram feitos entre 1887 e 1936. Uma obra de arte a favor da academia! Mais informações sobre a coleção de flores de vidro podem ser obtidas em http://hmnh.harvard.edu/glass-flowers e sobre os invertebrados marinhos em http://hmnh.harvard.edu/sea-creatures-glass. No final de ambas as páginas há um filminho com imagens belíssimas, contando a história e como foram feitos esses organismos de vidro.


Fig. 5. Organismos de vidro da coleção do Museu de História Natural da Universidade de Harvard. Foto: Jana M. del Favero.

Os museus podem guardar ainda preciosidades blibliográficas em suas coleções, como por exemplo, livros com as descrições de Carolus Linnaeus, um dos pesquisadores pioneiros na identificação de animais, considerado o “pai da taxonomia”, mantidas pelo Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo.. Este material é tão raro e de grande relevância que  é preciso ser  manuseado com luvas.

Uma pesquisa recente relatou que apenas 12% dos entrevistados visitaram um museu de ciência e tecnologia nos últimos 12 meses. Apesar de baixo, essa porcentagem aumentou se comparado com a mesma pesquisa em 2006, na qual apenas 4% afirmaram terem visitado um museu no último ano, e 8% em 2010. Entre os que não foram à nenhum museu, apenas 14,2% justificaram com a falta de interesse, sendo que 32,2% não tiveram tempo e 31,1% afirmaram que só não foram pois não existe nenhum em sua região.  Segundo o site que divulgou a pesquisa, o fato demostra muito mais a falta de acesso ao museu, ou de conhecimento sobre o mesmo, do que a falta de interesse, mostrando que a oferta é restrita e a informação é esparsa (Fonte: http://percepcaocti.cgee.org.br).

Então, após as curiosidades apresentadas aqui, que tal planejar uma ida ao museu e tentar enxergá-lo de um modo diferente?! 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O “sexo” realmente importa?

Por Jana M. del Favero

Ilustração: Silvia Gonsales.

Uma releitura e atualizações do texto de Ben A. Barres: “Does gender matter?” (O gênero importa?), publicado na revista Nature (volume 442) em 2006.

No meu primeiro post aqui no blog Desafios antigos para mulheres atuais apresentei brevemente algumas dificuldades que as mulheres sofrem nas ciências marinhas. Mas minha pergunta neste post é: o gênero realmente importa?

E foi pesquisando sobre essa pergunta que encontrei um trabalho na revista Nature escrito por Ben A. Barres, professor da Universidade de Stanford (EUA) e transgênero (mudou de mulher para homem, então segundo o próprio autor ele tem propriedade para discutir o assunto), e é a partir dessa publicação que me inspirei para esse post.

Ben Barres começa seu trabalho apresentando a hipótese, cada vez mais defendida por grandes acadêmicos de que as mulheres não avançam na carreira científica por serem naturalmente menos capazes e não por discriminação ou qualquer outra razão. Eu não interpretei errado (infelizmente), mas segundo alguns pesquisadores, homens são, “em média”, biologicamente melhores em sistematizar, analisar e em competir, enquanto as mulheres não gostam de competir, não se arriscam e são muito emotivas, e isso estaria prejudicando suas carreiras (veja detalhes em: Lawrence, 2006; Mansfield, 2006). Eu particularmente compartilho da idéia do Ben Barres de que a curiosidade e a criatividade são os pilares que sustentam grandes cientistas, e não a aptidão para competição.

Além disso, é comum escutarmos que homens são biologicamente melhores em matemática do que mulheres (vamos lembrar aqui que oceanografia é considerada uma ciência exata). Porém, um estudo com mais de 20.000 notas de matemática de crianças de 4 a 18 anos não mostrou diferenças entre as notas de homens e mulheres (Leahey & Guo, 2001). Então, se habilidade intelectual inata não é a culpada da morosidade do avanço das mulheres na carreira científica, o que seria? Nosso autor conta que quando “ela” (na época ele ainda era ela, então tratarei por “ela”) era uma aluna de graduação do MIT (Massachusetts Institute of Technology) “ela” era a única da sala de um monte de homens a resolver problemas difíceis de matemática, e ainda tinha que escutar do professor que provavelmente era o namorado dela que tinha resolvido. Ele lembra também de quando perdeu uma colocação para um homem, mesmo depois do diretor de Harvard ter avisado que “ela” tinha seis publicações de alto-impacto, enquanto seu concorrente apenas uma. E ainda foi obrigado a ouvir de um professor, depois da mudança de sexo, que o seu trabalho era muito melhor do que o “da sua irmã” (então mudar de mulher para homem deixa a pessoa mais inteligente? Estou confusa...). 

Mas o caso do nosso autor não é um caso isolado, um estudo mostrou que mulheres aplicando para um financiamento acadêmico precisam ser 2,5 vezes mais produtivas do que os homens para serem consideradas igualmente competentes (Wenneras & Wold, 1997). 


Figura 1. Revisores classificam com menores notas as mulheres do que homens com a mesma produtividade (Fonte: Barres, 2006).

E, mesmo depois de conseguirem uma boa colocação, as mulheres ainda passam por diversas dificuldades. Lembram do caso do MIT que eu cito em meu primeiro post, em que havia uma diferença salarial entre os professores e as professoras? Ou ainda um caso ocorrido recentemente, no qual uma pesquisadora recebeu a avaliação do seu trabalho submetido a uma revista de grande impacto nas ciências biológicas, sugerindo que co-autores do sexo masculino fossem adicionados para melhorá-lo (difícil acreditar né? Veja detalhes em:  http://news.sciencemag.org/scientific-community/2015/04/sexist-peer-review-elicits-furious-twitter-response). 


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Pesquisadora diz no twitter a conclusão do revisor do seu manuscrito: “nos deveríamos ter um nome masculino no manuscrito para melhorá-lo”.  

Então, se a discriminação não tem nenhuma parcela de culpa na baixa representatividade de mulheres cientistas, o que poderia explicar os fatos citados acima? O que explicaria um estudo recente que relata que os professores (homens) tendem a aceitar menos estudantes do sexo feminino e pós-doutorandas em seus laboratórios,  enquanto professoras não apresentam preferências de gênero na seleção de um orientado (detalhes em Sheltzer & Smith, 2014)? Ressalto ainda que esse estudo foi feito em laboratórios de biologia, fugindo daquele mito que mulheres são piores em ciências exatas (ou somos piores em biologia também?).

Mas não quero que esse post alimente a guerra dos sexos, pois como já dizia Henry Kissinger “Nobody will ever win the battle of the sexes; there’s just too much fraternizing with the enemy” (Ninguém nunca vencerá a batalha entre os sexos, há simplesmente muita confraternização entre os inimigos). O que eu desejo com essa postagem é mostrar que há fatos concretos de discriminação de gênero na academia, e que tanto mulheres quanto homens deveriam lutar para diminuir as diferenças existentes. 

Um primeiro passo para a diminuição das diferenças seria que  ambos os sexos parassem de negar que o problema persiste. Inexplicavelmente as mulheres negam tanto quanto os homens que o viés genérico exista (Rhode, 1997). Um outro passo seria aumentar a autoconfiança do sexo feminino (o tão falado empoderamento), pois ao escutar repetitivamente que somos menos capazes que os homens, a autoconfiança diminui e a ambição é ofuscada, aumentando o número de mulheres que desistem de suas carreiras na ciência (Feels, 2004). E um terceiro passo, que é exatamente o que tentamos fazer neste blog, é conhecer e discutir o problema, pois apenas com conhecimento da causa, ela poderá ser ganha. 

E então, vamos falar de sexo?!

Referências:

Fels, A. 2004. Necessary Dreams. Pantheon Press, New York.

Lawrence, P. A. 2006. Men, Women, and Ghosts in Science. PLoS Biol. 4, 13–15.

Leahey, E. & Guo, G. 2001. Gender Differences in Mathematical Trajectories. Soc. Forces. 80 (2), 713–732.

Mansfield, H. 2006. Manliness. Yale Univ. Press, New Haven.

Rhode, D. L. 1997. Speaking of Sex: The Denial of Gender Inequality. Harvard Univ. Press, 
Cambridge.

Sheltzer, J. M. & Smith, J. C. 2014. Elite male faculty in the life sciences employ fewer women. PNAS, 111 (28), 10107–10112.

Wenneras, C. & Wold, A. 1997. Nepotism and sexism in peer-review. Nature 387, 341–343.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Como saber a idade de um peixe e outras coisas mais...


Por Cláudia Namiki

Você já quis saber qual a idade de um peixe? Se ele nasce em um aquário, isso é fácil de saber, mas e se ele é capturado na natureza? Como você saberia quantos anos o bicho tem?

Os peixes ósseos possuem estruturas chamadas otólitos que são localizadas no ouvido interno, e estão relacionadas com os mecanismos de equilíbrio e audição. Em Portugal, também são conhecidos como “pedras do juízo”, o que faz muito sentido, já que estão encontrados na cabeça  dos peixes! São três pares de otólitos e cada um possui um nome diferente: sagitta, lapillus e asteriscus. (Gostaria de saber por que cada um deles recebeu esse nome, mas ainda não encontrei a resposta…). O crescimento dos otólitos ocorre através da deposição alternada de carbonato de cálcio e proteína, formando anéis que podem ser observados em um corte transversal, assim como aqueles observados nos troncos das árvores. 



Otólitos de larvas de Myctophum affine. Fotos: Cláudia Namiki. 


Em peixes adultos o otólito é grande, e é preciso cortar, lixar e polir até que os anéis estejam visíveis. Nas larvas de peixes os otólitos são muito pequenos e não é preciso fazer nada disso, pois os anéis são visíveis através dos otólitos quando utilizamos o microscópio. Nesse caso, o maior trabalho é retirar os otólitos das larvas que medem entre 2,0 mm até no máximo 2,0 cm. Se a larva é tão pequena, imagine o tamanho do otólito!! Dá um certo trabalho realizar essa tarefa, dizem até que é coisa para pessoas com paciência oriental. Eu acho que utilizei os 25% do meu DNA japonês quando estudei o crescimento das larvas de uma espécie de peixe lanterna muito abundante na costa brasileira: Myctophum affine. Vou ficar devendo um nome popular, porque, apesar de abundante e muito apreciada como alimento por outros peixes, não é utilizada para consumo humano e, portanto é uma ilustre desconhecida para a maioria de nós.


A ilustre desconhecida Myctophum affine. Foto: Gabriel Monteiro.


Olha o tamanho de um otólito de larva de peixe, esse é dos grandes hein! Foto: Campana, S.E. http://www.marinebiodiversity.ca/otolith/english/preparation.html

Mas e aí? O que isso tem a ver com o tema? Como podemos saber a idade de um peixe?

Acontece que a formação dos anéis dos otólitos é diária em larvas de peixes e anual em peixes adultos, na maioria dos casos. Dessa forma, contando o número de anéis presentes em um otólito, podemos saber qual a idade do peixe, em anos ou em dias, dependendo do momento da vida em que o peixe se encontra. Mas, o mais interessante é que podemos relacionar a idade com o comprimento e, com dados de vários peixes em mãos, podemos saber em quanto tempo uma espécie atinge um certo tamanho. Por exemplo, as larvas da ilustre desconhecida M. affine podem aumentar  seu tamanho em mais de quatro vezes em menos de um mês! É muito rápido! Larvas de outras espécies mais populares como sardinha e chicharro também crescem com uma velocidade parecida. 

Conhecer qual é a velocidade de crescimento das larvas e juvenis de peixes é importante para saber quanto tempo cada espécie demora até se tornar um adulto e poder reproduzir. Essa velocidade de crescimento pode ser influenciada por diversos fatores. Entre eles a temperatura parece ser um dos mais importantes, pois temperaturas mais altas aceleram o metabolismo e tornam o crescimento mais rápido. Olha que interessante, se nós fôssemos parecidos com os peixes, cresceríamos mais rapido no Brasil do que na Rússia! Por exemplo, os peixes lanterna podem demorar desde apenas 27 dias para se tornar um jovem (espécies de clima tropical) até 80 dias (espécies de clima frio).

Quando comecei os estudos com otólitos eu estava interessada somente na idade e no crescimento das larvas de peixes, mas descobri que essas estruturas são ainda mais fascinantes, porque são bastante resistentes (no caso dos peixes adultos) e sua forma é única para cada espécie. Essas características permitem utilizar os otólitos encontrados no estômago de outros indivíduos e em sítios arqueológicos para identificar a espécie que foi consumida, ou que habitava determinado local há milhares de anos. A forma é tão importante que muitos trabalhos são dedicados à descrever os otólitos, e entre eles está um atlas de identificação de otólitos publicado recentemente na Brazilian Journal of Oceanography, por pesquisadores do Instituto Oceanográfico da USP (http://dx.doi.org/10.1590/S1679-875920140637062sp1)  (e que contém ilustrações lindíssimas da nossa ilustradora e oceanógrafa Silvia Gonsales). 


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Otólitos de Cangoá (Stellifer rastrifer) ilustrados por Silvia Gonsales. http://dx.doi.org/10.1590/S1679-875920140637062sp1

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Otóltos de Cangoá (Stellifer rastrifer) fotografados
 por
Cesar Santificetur.
Link de acesso.


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E aqui o próprio Cangoá (Stellifer rastrifer). Foto:
Carvalho Filho, A.

Link de acesso.

Além de tudo isso, os otólitos ainda carregam informações do ambiente por onde o peixe andou (ou seria melhor dizer nadou?). Sabendo quais elementos químicos estão presentes nos otólitos é possível saber onde o peixe esteve ao longo de sua vida. 

Assim, enquanto para os peixes os otólitos podem ser simples instrumentos de orientação, para nós é um mundo de informação sobre a história de vida desses organismos tão importantes.

Se quiser saber mais, acesse:

http://www.usp.br/cossbrasil/doc_labic.php

Campana, S.E. 2011. Otolith Microstructure Preparation. Disponível em: http://www.marinebiodiversity.ca/otolith/english/preparation.html

Campana, S. E. & Jones, C. M. 1992. Analysis of otolith microstructure data. In Otolith Microstructure Examination and Analysis (Stevenson, D. K. & Campana, S. E., eds), pp. 73–100. Canadian Special Publication of Fisheries and Aquatic Sciences 117.

Conley, W. J. & Gartner, J. V. 2009. Growth among larvae of lanternfishes (Teleostei: Myctophidae) from the Eastern Gulf of Mexico. Bulletin of Marine Science 84, 123–135.

Katsuragawa, M. & Ekau, W. 2003. Distribution, growth and mortality of young rough scad, Trachurus lathami, in the south-eastern Brazilian Bight. Journal of Applied Ichthyology, 19, 21–28.

Namiki, C.; Katsuragawa, M.; Zani-Teixeira, M. L. 2015. Growth and mortality of larval Myctophum affine (Myctophidae, Teleostei). Journal of Fish Biology, 86, 1335-1347. doi:10.1111/jfb.12643, Disponível em: wileyonlinelibrary.com

Rossi-Wongtschowski, C.L.D.B., Siliprandi, C.C., Brenha, M.R.,Gonsales, S.A., Santificetur, C., Vaz-dos-Santos, A.M. 2014.Atlas of marine bony fish otoliths (sagittae) of Southeastern- Southern Brazil Part I: Gadiformes Macrouridae, Moridae, Bregmacerotidae, Phycidae And Merlucciidae); Part II: Perciformes (Carangidae, Sciaenidae, Scombridae And Serranidae). Brazilian Journal of Oceanography, 62(special issue):1-103. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-875920140637062sp1

Zavalla-Camin, L. A., Grassi, R. T. B., Von Seckendorff, R.W. & Tiago, G. G.1991. Ocorrência de recursos epipelágicos na posição 22°11’S - 039°55’W, Brasil. Boletim do Instituto de Pesca 18, 13–21.


sexta-feira, 24 de abril de 2015

A feliz alteração na minha carreira proporcionada pela minha filha

Para continuar com a discussão sobre quando colocar filhos no cronograma (acesse aqui), convidamos a bióloga Lilian P. de Oliveira para compartilhar conosco seu depoimento.


Ilustração: Silvia Gonsales.

Todos nós temos sonhos e objetivos na vida. Eu, como não sou diferente, sempre sonhei em casar e constituir uma família, assim como ter uma vida profissional estável. Durante minha vida escolar me fascinavam as aulas de biologia, assim como as de artes plásticas... nada a ver, eu sei! Mas a biologia falou mais alto e iniciei o curso de graduação em Ciências Biológicas e da Saúde. Foram quatro anos de muita dúvida, não sabia se conseguiria estágio, emprego, o que faria do meu futuro profissional. No final da graduação, um amigo me indicou um estágio no laboratório de Zooplâncton do Instituto Oceanográfico da USP (IOUSP). Quase nem acreditei! Marquei para conversar com o professor que coordenava o laboratório e ele me aceitou como estagiária. Em uma semana lá estava eu aprendendo a identificar copépodos e outros organismos marinhos microscópicos (Leia mais em “Para o plâncton, tamanho é documento...”). Fiquei no laboratório participando dos projetos de pesquisa, conheci diversas pessoas e fiz amigos especiais que fazem parte da minha vida até hoje! Após dois anos ingressei na pós-graduação no curso de Oceanografia Biológica do Instituto, os meses que seguiam seriam de muito estudo e dedicação ao meu projeto. 



Em paralelo, a vida pessoal seguia também! Montei minha casa, me casei e uma nova fase se iniciou. Parte do meu objetivo foi alcançado, mas a maternidade estava presente em meus planos, seria para o ano seguinte ao término do mestrado. Como não podemos controlar tudo na vida, o inesperado aconteceu, engravidei um ano após o início do curso... tensão total! Não sabia se meu desespero era por ser muito imatura emocionalmente, por não ter uma vida profissional estável, por estar no meio do mestrado... na verdade acho que foi tudo isso e mais um pouco!


A cada semana gestacional sentia a transformação no meu corpo, nos hormônios e a “ficha caiu”, um bebê logo estaria em meus braços dependente de mim 100%. Meu Deus, o que eu faço? Era o pensamento diário que martelava em minha mente.

Se não bastasse essa dúvida de como ser mãe, como cuidar de um ser tão frágil, ainda tinha meu trabalho. Faltava muito ainda para finalizar, então segui com a evolução dos meus dois bebês, a Letícia e a dissertação! Adiantei tudo o que pude do trabalho em laboratório para que quando ela chegasse eu pudesse ficar em casa apenas redigindo. E tudo deu certo, contei com a ajuda e compreensão de todos os envolvidos.

Chegou o dia, a Letícia nasceu em 17 de dezembro de 2008, branquinha, olhos azuis, uma princesa rsrsrs!! Os três dias que permanecemos na maternidade foram perfeitos, podia dormir, me alimentar bem para ter energia e amamentá-la, mas o sonho acabou quando voltei para casa. Sabia que no início seria muito difícil, um bebê não vem com manual de instruções, fui me adaptando a cada dia com essa nova relação, tudo era novidade para nós duas. Além de cuidar dela tinha que analisar alguns resultados e redigir o texto da dissertação. Meu prazo estava próximo, teria que entregar em seis meses.

Alguns dias não sentia nem vontade de ligar o computador para trabalhar, passava o dia “babando” a filhota! A cada dia uma mudança, era nítida a evolução, o aprendizado. Somos muito perfeitos, nosso organismo trabalha sincronizado e o desenvolvimento acontece muito naturalmente. Fui abençoada em poder acompanhar essa fase da vida dela.

Os dias passaram e meu prazo estava chegando ao fim, o que fortalecia era saber que ao terminar teria mais tempo para me dedicar a minha filha, isso ajudou muito, era meu combustível. Consegui finalizar as correções do professor, imprimir o trabalho e apresentá-lo à banca de julgamento da pós-graduação... Pronto, mais um parto bem sucedido rsrsrsrsrs!

Afastei-me de tudo e desempenhei apenas o papel de mãe durante os meses seguintes. Cheguei a pensar que estava livre, que tudo seria mais fácil a partir daquele momento, mas o questionamento em relação ao meu futuro continuava... deparei-me com duas opções: a primeira seria voltar para a pesquisa, continuar meu trabalho e posteriormente encarar um doutorado... seria perfeito!! Na área profissional estaria realizada, mas existiam pontos negativos nessa escolha, teria que me deslocar de um lado ao outro da cidade, gastar 4 horas por dia no transito “louco” de São Paulo, viajar para as coletas e ficar dias longe de casa. A segunda opção era trabalhar com meu marido em uma empresa de importação e vendas na área administrativa, como já tinha experiência recebi essa proposta... acho que atraio esse tipo de função devido à minha organização exagerada! Teria vantagens, pois o escritório ficava no mesmo bairro onde morávamos na época e a cinco minutos da escola onde a Letícia ficaria, estaria próxima da minha família e sem desgaste emocional. Foi um momento complicado, teria que escolher entre minha carreira e minha família... minha vontade era sumir, desaparecer e não ter que fazer escolha nenhuma, não tinha ideia do que eu queria.

A princípio optei pelo emprego administrativo, mas tinha sempre em mente que voltaria para a pesquisa em breve, mas o tempo foi passando, me adaptei as funções exercidas na empresa e a comodidade de estar com minha família fez toda a diferença. Já não pensava mais em voltar para a área, estava desatualizada. Passei um período muito triste, pois sentia que abandonei um sonho, que joguei fora os anos de estudo e de trabalho, sempre me questionava se havia escolhido o melhor caminho.

Passaram-se seis anos e hoje vejo que minha escolha foi correta, estou realizada profissionalmente, pois tenho um bom trabalho, desempenho uma função de confiança na empresa e sou agradecida pela minha linda família. A Letícia participa diretamente da minha vida, é minha amiga e companheira, fazemos muitas coisas juntas e isso é maravilhoso! Sou muito feliz com a vida que escolhi. 

Sobre a autora:

Lilian P. de Oliveira é bióloga, mestre em Ciências pela Universidade de São Paulo e super mãezona. Participou de vários projetos de pesquisa junto ao Laboratório de Sistemas Planctônicos, no qual desenvolveu seu projeto de Mestrado “Análise comparativa da distribuição das famílias Salpidae e Doliolidae em relação ao zooplâncton total na plataforma continental sudeste do Brasil por meio de técnicas semi-automáticas de identificação e contagem” que descreve a distribuição de salpas e dolíolos (“primos” das águas-vivas), que são ecologicamente importantes no ambiente marinho e se alimentam de organismos planctônicos, inclusive de larvas de peixes. Lilian analisou material biológico coletado na costa do Brasil durante cruzeiros oceanográficos realizados pelo Instituto Oceanográfico, utilizando um scanner a prova de água, chamado ZooScan, que gera imagens dos organismos para facilitar a contagem e mensuração do seu tamanho.