sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

História de Pescador

Por Ana Helena Bevilacqua

Tudo começou em 2007, quando a paulistana deixou o berço da cidade natal e decidiu viver na Amazônia. Os objetivos da mudança eram fazer o mestrado, estudar fisiologia de peixes de água doce, conhecer a floresta, aprender a pescar e ganhar asas. Destes todos, a pesca deixou a desejar...


O projeto de mestrado contava com muitas atividades e coletas em campo durante longos períodos pelo interior do Amazonas. Coletava peixes, fazia experimentos, conhecia gente, aprendia os costumes da mata e vivia intensamente a floresta e suas tradições. E nesse mar de novas experiências, nasceu a paixão pela conversa de pescador!


Naquela época, a conversa não era o objetivo do estudo, mas rapidamente passou a ser o objetivo pessoal. E assim, os longos e mornos finais de tarde foram preenchidos pela companhia de pescadores e suas famílias, sempre cheios de crianças, cachorros e, claro, um bom cafezinho, bem doce e fresco, como a tradição local não deixa faltar.


A partir desse papo, informal e descompromissado, foram nascendo as ideias para o futuro doutorado, até então apenas em planos porque o mestrado devia ser finalizado. E o tempo foi passando, as coletas acabando, o mestrado defendido, e a vontade de continuar as conversas só crescia. Mas e agora?


E aí que já estava traçado o tema do doutorado: ecologia humana de pescadores de pequena escala.


Foto: Laura Honda
E foi assim que a migração para a ciência marinha aconteceu tão naturalmente quanto aquelas longas conversar na beira do rio, dando lugar a conversas mais direcionadas, na companhia de prancheta, lápis e com um oceano de água salgada à nossa frente.

Que delícia, ir para a praia para passar o dia conversando com pescadores! Era tudo o que eu queria! Mas como nesse momento o objetivo já era outro, as conversas já não eram mais descompromissadas e leves. Neste momento haviam perguntas a serem respondidas, uma metodologia a ser seguida, resultados a serem buscados e algo a ser concluído! Afinal, eu já estava fazendo as coletas do doutorado!


Foto: Laura Honda
O objetivo do doutorado era entender um pouco mais a pesca de pequena escala no litoral do nordeste brasileiro e trazer para perto da ciência acadêmica o conhecimento tradicional do pescador. Basicamente o que eu queria fazer era aliar o conhecimento tradicional às ciências marinhas e provar que este pode ajudar, e muito, a preencher as lacunas que existem na ciência e, assim, melhor embasar os planos de manejo e as políticas públicas. Mas para isso precisava provar que por trás da “conversa de pescador” havia conhecimento.



Foto: Laura Honda
Então, o que eu queria era comparar se as informações que conseguia com os pescadores estavam de acordo com o conhecimento científico, usando um modelo virtual de um ecossistema marinho. Esse modelo virtual tenta representar todas as relações ecológicas que existem no ecossistema real, como crescimento, reprodução, predação, entre outros. Para isso, criei dois modelos: um apenas baseado nas informações que obtive durante as “conversas” com os pescadores artesanais e outro criado com informações da literatura científica. E depois seria só comparar os dois!


Para a criação desse modelo de ecossistema marinho usei um software livre chamado Ecopath with Ecosim, que nada mais é do que um programa de computador onde inserimos todas as informações de um ecossistema real e conseguimos um ecossistema virtual. Este programa foi criado por Villy Christensen e Daniel Pauly em 1992, no Centro de Pesca da Universidade da British Columbia em Vancouver, Canadá, e que continua a ser aprimorado até hoje. Está baseado em equações de balanço de energia que definem a dinâmica natural presente no ambiente marinho e as relações ecológicas que ocorrem ali, ou seja, toda a energia disponível é ciclada entre as espécies presentes e é responsável pelo crescimento e reprodução dos organismos. Para isso é comparada as informações da quantidade de alimento necessária por dia para os predadores com as informações sobre o crescimento e reprodução das presas. O programa é capaz de criar uma “fotografia ecológica” do que está acontecendo no ecossistema naquele momento (Se quiser saber mais sobre o software acesse www.ecopath.org ou de uma olhada nas referências abaixo).


Para a criação do ambiente virtual marinho (ou de água doce, se preferir) precisamos definir o tamanho da área, colocar todas as espécies ou grupos presentes, inserir informações sobre a dieta dos organismos, definir quem são os predadores, o quanto cada um come por dia e a taxa de crescimento de cada espécie, sem esquecer de inserir a pesca por tipo de embarcação e apetrecho.


Definido tudo isso, o programa cria todas as interações biológicas e monta uma teia trófica de quem come quem, igualzinho ao esquema abaixo. A vantagem desse modelo é que além de criar um ecossistema de fácil visualização, ainda podemos inserir a pressão de pesca sobre determinada espécie alvo, como também o chamado by-catch (expressão usada pela ciência pesqueira para definir a pesca de espécies acessórias que são capturadas acidentalmente junto com a espécie alvo).


Essa foi a cadeia trófica criada pelo software Ecopath with Ecosim usando apenas as informações dos pescadores. A cor indica o nível trófico, sendo vermelho os organismos produtores da base do ecossistema (como as algas, o fitoplâncton e os detritos), e quanto mais azul, mais alto na cadeia trófica, representado pelos organismos no topo, ou seja, os predadores (tubarão, golfinho e grandes pelágicos). O tamanho do círculo representa a biomassa (quantidade de indivíduos e peso de cada grupo de organismos) e as linhas representam as interações tróficas dos grupos inseridos no ecossistema.

E o mais legal é que com esse modelo conseguimos “prever” como o ecossistema inteiro reagiria a um aumento (ou diminuição) da pressão de pesca, restrição de determinado apetrecho, fechamento de áreas ou mesmo a proibição total da pesca ou de determinada espécie alvo. Com isso, conseguimos um melhor entendimento sobre o futuro, caso algumas ações de manejo e conservação sejam (ou não) tomadas.


Mas e os pescadores? Ah sim! O resultado foi incrível: o modelo dos pescadores e o modelo científico são praticamente iguais! Ou seja, os pescadores possuem conhecimento que pode ser equiparado ao conhecimento científico em algumas questões, e este pode ser usado para preencher as lacunas de informações científicas sobre determinada área e/ou espécie. Além de ser de baixo custo, este tipo de informação pode ser acessada em um tempo bem menor em comparação à certas pesquisas científicas.


Mas claro que os pescadores não tem todas as respostas. Assim como na ciência, algumas questões continuam a ser uma grande incógnita para todos os seres humanos. Portanto, aliar a ciência ao conhecimento tradicional dos usuários dos recursos pode trazer um melhor entendimento sobre as relações ecológicas e facilitar a implantação de planos de manejo para a utilização destes mesmos recursos.


Para saber mais:


Christensen V (2013) Ecological networks in fisheries: predicting the future? Fisheries 38(2):76–81


Christensen V, Pauly D (1992) ECOPATH II—a software for balancing steady-state ecosystem models and calculating network characteristics. Ecol Model 61:169–185


Coll, M., et al. (2015) "Modelling dynamic ecosystems: venturing beyond boundaries with the Ecopath approach." Reviews in Fish Biology and Fisheries 25.2: 413-424.


Apaixonada pelos animais desde sempre, mas foram os peixes que mais lhe chamou a atenção. Por não gostar de ver os bichos doentes decidiu virar bióloga (Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo), foi fazer mestrado na floresta (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, INPA, Manaus) e acabou indo parar na praia para o fazer o doutorado. Hoje a Ana está passando frio no estágio sanduíche no Institute for the Oceans and Fisheries da Universidade da British Columbia em Vancouver (Canadá) como parte dos requisitos do doutorado em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN, Natal). Além dos bichos, ela se interessa por alimentação saudável, psicologia canina, trilhas, stand-up padle e maracatu.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O mergulho como ferramenta de pesquisa

Por Aline Alves

Nos últimos anos o mergulho tem deixado de ser uma atividade pra poucos. Muitas pessoas buscam o mergulho como lazer, hobby e até mesmo atividade física. Eu, apesar de ter passado a vida longe do mar, sempre fui muito conectada a tudo que era relacionado a ele. Quando fiz o meu primeiro mergulho autônomo, um simples batismo, foi amor à primeira vista. Depois disso, foi só questão de tempo pra que eu entrasse de vez nesse mundo. Passei a fazer cursos de mergulho recreativo, com o simples objetivo de mergulhar bem. No entanto, já cursava biologia e o fato de aprender a mergulhar poderia ser o primeiro passo para trabalhar com biologia marinha. 

Censo visual. Foto: Dilson (Zá).
Com o uso do mergulho como um meio para fazer pesquisa, de uma ramificação do mergulho autônomo surgiu o mergulho científico. Esta classificação de mergulho nada mais é do que adaptação/criação de metodologias científicas para o ambiente aquático. Em outras palavras, pesquisadores passaram a utilizar do mergulho para entender melhor o ecossistema aquático, e com isso técnicas foram desenvolvidas para que fosse possível coletar dados e amostras de maneira viável e segura. 


Monitoramento Donzelinha. Foto: Aline Alves.
Após adquirir um pouco de experiência embaixo d’água com o mergulho recreativo, eu comecei a utilizar o mergulho como ferramenta de trabalho no mestrado. Nesse período, trabalhei com comportamento reprodutivo de uma espécie de donzelinha (peixes recifais de uma família bastante comum na costa brasileira), e consegui conciliar uma das coisas que eu mais amava fazer à metodologia do meu projeto. Foi nesse momento que comecei a aprender os diferentes métodos de coleta de dados, vendo os pesquisadores mais experientes trabalharem. 

Dependendo do objetivo da coleta, o mergulho científico pode ser realizado para diferentes tipos de amostragens. Existem os métodos ditos como não destrutivos, como por exemplo, os censos visuais, observações e monitoramentos com uso de filmagens e fotografias. Os censos visuais são realizados dentro de uma área delimitada, onde o pesquisador conta o número de indivíduos alvo do estudo e registra também outros dados relacionados ao local da coleta. Particularmente, poderia descrever aqui diversas vantagens na utilização desses métodos. Já utilizei muito deles, e sei que pode-se obter resultados incríveis causando o mínimo de impacto. Alguns outros estudos envolvem coletas de material biológico de fato. E nesse caso, é necessário o conhecimento de outras técnicas que podem exigir o uso de equipamentos de elevação, e movimentação controlada de amostras. Essas técnicas exigem do mergulhador um bom controle de flutuabilidade e organização, pois qualquer descuido pode prejudicar toda a amostragem.
Coleta - monitoramento banco dos Abrolhos. Foto: Dilson (Zá).

Coleta com puçá - ASPSP. Foto: Aline Alves.
Além de apresentar técnicas que permitem executar o mergulho com mais segurança, a importância de usar o mergulho científico como ferramenta de trabalho vem da possibilidade de explorar locais e profundidades nunca antes estudadas e ter a chance de inúmeras observações novas, tais como espécies e comportamentos diferentes daqueles já registrados. Dessa forma, é possível ter mais abrangência e precisão na hora de monitorar ambientes aquáticos. 

Mas de todas as vantagens, a que mais chama atenção das pessoas  é a oportunidade que o mergulho científico te dá de trabalhar nos lugares mais incríveis que você já imaginou. Estar em ambientes prístinos, remotos e em águas cristalinas, com certeza fazem valer a pena qualquer esforço. Sem contar quão próximo você fica de um ecossistema tão único e de todos os seres que dele fazem parte. Aprendi muito em todas as expedições que participei. Nelas você fica muito tempo, seja embarcado ou em algum arquipélago, com pessoas que às vezes você mal conhece. Conviver com pesquisadores renomados e mergulhadores experientes, só contribuiu para o meu aprendizado. Além disso, te possibilita fazer grandes parceiros de trabalhos e amigos. 


Abrolhos II. Foto: Aline Alves.

Abrolhos III. Foto: Aline Alves.

Abrolhos. Foto: Aline Alves.
Eu tive o privilégio de ter como área de estudo durante o mestrado uma das ilhas oceânicas brasileiras, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, e foi uma experiência singular, que só acrescentou a tudo que sei hoje. Como trabalhava em um lugar inóspito e de difícil acesso, toda atenção era necessária e com isso passei a cuidar mais de mim e das pessoas que mergulhavam comigo. Foi essencial para que eu conseguisse evoluir como mergulhadora e pesquisadora. Sem dúvidas, a melhor memória que tenho até hoje desse arquipélago foi poder ver de perto um tubarão baleia, a apenas dez metros de profundidade, quando voltava de um mergulho de coleta. Sensação indescritível, que rendeu lágrimas e muita satisfação por poder trabalhar mergulhando!

Por outro lado, existem sim algumas dificuldades em utilizar o mergulho como ferramenta de pesquisa. A primeira delas está relacionada aos custos. Para realizar a coleta você precisa de equipamentos de custo geralmente alto. Junto a isso, na maioria das vezes é necessária uma embarcação, o que encarece mais o estudo. Muitas metodologias envolvem ainda o uso de câmeras fotográficas e milhares de outros equipamentos específicos e caros. Logo, trabalhar com mergulho científico requer uma logística cheia de detalhes, onde todo equipamento é fundamental para o bom andamento da coleta e também para a segurança dos pesquisadores. 



Arquipélago de são pedro e são paulo (ASPSP) com o mar agitado.
Outra dificuldade encontrada é que nem sempre o local do trabalho vai ter as melhores condições. Ninguém mergulha em condições extremas, mas dentro daquilo que é seguro e aceitável, tem que estar preparado para mergulhar em locais com baixa visibilidade, correnteza, e até mesmo enfrentar dificuldades relacionadas à embarcação. Quando tinha que ir para o arquipélago de São Pedro e São Paulo enfrentava cerca de três dias de barco para chegar e nem sempre a viagem era tranquila.  Mas eu sabia que quando você se submete a estar em mar aberto, tem que saber que o mar é quem manda, é o mar quem vai dizer quando você vai chegar, e principalmente, quando vai mergulhar. Se as condições do mar não estiverem adequadas, a única coisa que resta fazer é respeitar e esperar até que tudo se acalme.

Enfim, apesar de nem tudo ser tão simples e fácil como aparece em filmes e documentários, eu acredito que todo esforço pra se trabalhar com mergulho científico é mais do que válido. Procuro mostrar sempre o lado bom, que a meu ver sobrepõe qualquer dificuldade. Com uma costa extensa como a nossa, deveria haver mais investimentos para isso aqui no Brasil. Podemos ter inúmeros avanços monitorando de forma efetiva os ambientes aquáticos, descobrindo novos e importantes fatos a todo o momento. O mundo subaquático é um mundo completamente diferente, cheio de coisas incríveis e lindas para serem desvendadas. O que o mergulho científico faz é facilitar essas descobertas. Com apenas cinco anos trabalhando nisso, já tive as melhores experiências da minha vida, e nunca vi alguém experimentar e não se encantar.

Interessados em ler um trabalho que foi feito utilizando o mergulho como ferramenta podem acessá-lo aqui: http://www.ingentaconnect.com/content/umrsmas/bullmar/2012/00000088/00000002/art00001?crawler=true





Aline é bióloga pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, divemaster e apaixonada pelo mar. Mestre em Ciências Biológicas com ênfase em Zoologia pela Universidade Federal da Paraíba. Atua em projetos voltados à ecologia e conservação de peixes recifais desde 2010.