sexta-feira, 15 de maio de 2015

O filho que concorreu com a ciência e empatou

Por Rafael Flaquer Soares


O meu primeiro aniversário foi, por assim dizer, um estouro; nesse pouco tempo de vida eu já podia orgulhar-me de ter ido a uma grande aventura, que foi morar nos Estados Unidos e voltar para contar a história. Por causa do meu pai eu passaria os meus próximos anos lá, por isso essa festa servia como uma forma de despedida temporária de parentes e amigos. Mas apesar de ter me divertido muito na festa, era possível perceber certo nervosismo exagerado em minha mãe, um tipo de estresse típico de quem tenta acumular mais tarefas do que parece humanamente possível e então fica sobrecarregada pelas consequências.


Isa e Rafa no Cassino.
Naquela época eu não tinha como saber, mas ela estava se preparando para defender a sua dissertação de mestrado. A preocupação e o esforço pagaram bem, já que ela conseguiu um dez com distinção. Mas para entender de fato o tamanho desse esforço e o que foi exigido dela enquanto mãe, eu preciso voltar ainda mais, para uma época em que eu nem havia nascido.

Minha mãe conheceu o meu pai em 1991, pouco antes de começar o mestrado. Até então, o seu único objetivo era o acadêmico, e o doutorado parecia um sonho possível. De início, o relacionamento dos dois parecia não interferir muito na situação, os dois sendo alunos e morando juntos em São Paulo. Foi só em 1993 que surgiu o primeiro problema: meu pai, que estava um ano já há frente, terminou o mestrado e passou no concurso para professor na FURG. Sendo uma oportunidade sem igual na sua área, ele imediatamente seguiu para lá.


Experimentos a bordo do NOc W. Besnard.
Experimental Hatchery na RSMAS.












O problema era que a minha mãe não havia terminado o mestrado dela ainda e agora se encontrava dividida entre seguir o seu futuro marido ou a sua sonhada carreira. Ela até tentou trabalhar e estudar por dois meses em São Paulo, mas acabou cedendo à pressão e seguindo para Rio Grande com o mestrado ainda incompleto. Desse reencontro eu fui concebido, e em dezembro de 1995 eu nasci. Um ano de trancamento foi concedido em resposta à gravidez, uma pausa bem-vinda mas demasiadamente curta para garantir um bom crescimento a qualquer filho.

A situação complicou-se ainda mais no ano seguinte, quando meu pai conseguiu a oportunidade de fazer um PhD nos Estados Unidos com uma bolsa de estudo. Seria uma viagem de muitos sacrifícios, mas também de grandes recompensas, e por isso meu pai decidiu aceitá-la. O problema era que estes sacrifícios não seriam apenas dele...

Eu tinha ainda pouquíssimos meses quando meus pais se casaram. Foi um casamento engraçado e desastrado, feito em cartório e com marido e mulher separados por todo um oceano de distância. Ter um pai que ganharia um título tão importante como o de PhD era o máximo e a minha mãe concordou com a ideia, mas aquilo tudo também significava que ela, além de mãe e bióloga, agora teria que ser também esposa. Quantas coisas, eu perguntava-me, ela poderia ser até acabar não sendo uma coisa nem outra? A resposta, para minha surpresa, era um número maior do que eu imaginava.
Isa na defesa.

Passei dois meses em Miami, após os quais retornei para o meu aniversário e para a defesa da minha mãe. E por mais ilustre que a defesa do mestrado tenha sido, ela marcou o começo do grande hiato acadêmico para minha mãe, um hiato que lhe custaria projetos e publicações, pois tivemos que voltar a Miami logo em seguida. Uma diferença como essa, de aproximadamente 10 anos, não era do tipo que fosse possível superar depois.

Mas era preciso. Como minha mãe poderia deixar que o seu filho crescesse sem mãe nem pai? Alguém tinha de me criar, ensinar-me os valores e a ética que pais inexperientes esperam que os seus filhos aprendam nas escolas. Mas um bom pai sabe que essa educação só se aprende em casa, com os entes queridos. Eu também não ajudava muito, claro; em meus primeiros anos era extremamente próximo de minha mãe e um dia longe dela deixava-me aos prantos.
Isa e Rafa em Miami.

O resultado de tudo foi que, de 1997 até 1999 eu e a minha mãe cuidamos da casa enquanto meu pai buscava levar a sua carreira o mais longe possível para sustentar a todos nós no futuro. Foi só no ano de véspera do milênio que eu estava pronto para enfrentar o mundo sozinho nos dias da semana; a escola foi escolhida a dedo, para certificar-se de que eu teria apenas a ganhar saindo de casa. Minha mãe aproveitou a oportunidade para tentar retornar um pouco à sua carreira, conseguindo um estágio na Experimental Hatchery (na University of Miami) pelo ano seguinte. Nessa época, ela cumpria o papel de assistente de pesquisa até às 14 horas, então, de mãe e dona de casa o resto do dia e esposa em tempo integral.

O estágio acabou-se, bem como a bolsa de PhD, nos anos 2001. Eu retornei com a minha mãe um pouco antes, onde passei o meu aniversário de cinco anos e por onde ficamos alguns meses enquanto meu pai terminava a sua pós-graduação. Ele chegou ao final do ano e, então, retornamos todos à cidade de Rio Grande, onde tudo poderia retornar ao normal. Mas as coisas não voltaram ao normal. Depois de um ano meus pais se separaram e eu parti com a minha mãe de volta a São Paulo.

Chegou-se, então, ao ponto crítico da história. Por um momento parecia que éramos apenas eu e a minha mãe contra o mundo, sem casa, sem dinheiro e sem perspectiva de emprego algum na maior cidade do Brasil. A situação parecia desesperadora, mas são nas noites mais escuras em que as estrelas brilham mais fortes; meus avós ofereceram a sua casa para a nossa estadia e, de lá, a minha mãe começou o longo processo de reconstruir a sua carreira. Custou-lhe vários anos, mas tudo valeu a pena e, em 2009, se formou doutora e logo em seguida fez seu pós-doc.

Hoje em dia, a minha mãe é bolsista no Instituto Oceanográfico e tem o que é preciso para viver com dignidade. Eu vivo muito feliz com o meu pai em Curitiba agora, mas nunca vou esquecer e devo muito à educação excepcional para a minha geração que me foi concedida nos meus anos mais novos. Tudo isso porque, apesar de tudo, eu garanto que a minha mãe encarou os desafios da sua vida com distinção e foi uma dezena de coisas ao mesmo tempo sem nunca esquecer quem ela era. Se isso não é o verdadeiro significado de ser doutora e mãe, eu não sei qual é.


Meu nome é Rafael Flaquer Soares e tenho 19 anos. Nasci em São Paulo, cresci nesta cidade, nos Estados Unidos e em Rio Grande (RS). Moro agora em Curitiba e faço o curso de Engenharia Mecânica na UFPR, mas também sou escritor amador.

Um comentário:

  1. Que texto bacana, Rafael.
    Não acredito que esse menino está desse tamanho, gente. hehe. Que aconteceu, Isa? kkkkk Gosto pra caramba de textos biográficos, e uma história de alguém que a gente conhece e gosta muito, mais emocionante ainda. Parabéns. A gente se encontrou poucas vezes durante o período que fiz doutorado com a Isa, mas ela sempre falava de você, então é como se nos conhecêssemos melhor....e você era "pequeninim". A Isa, uma pesquisadora e amiga que sinto muita falta. Beijo pra Isa, abração procê.

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