No verão de 1988, Christian Sommer, um estudante alemão de biologia marinha com pouco mais de vinte anos de idade, e sua namorada passavam o verão na pequena cidade de Rapallo, na Riviera Italiana. Christian também conduzia alguns estudos sobre pequenas águas-vivas (ou medusas). Ele mergulhava no oceano azul turquesa, entre os desfiladeiros de Portofino à procura desses animais, revirando o fundo do mar e também passando redes com malhas muito finas, para coletar medusas que são quase imperceptíveis durante o mergulho. Entre as diferentes espécies, Christian encontrou uma diminuta água-viva da espécie Turritopsis dohrnii, de cor púrpura, que possui de 15 a 30 tentáculos e alguns poucos milímetros de tamanho. Após alguns dias de observações, Christian esqueceu de suas pequenas medusas e ao invés delas morrerem elas definharam e se transformaram em um estágio mais jovem. Ao melhor investigar esse fenômeno, Christian e outros cientistas italianos de Gênova perceberam que, ao contrário de outras águas-vivas que normalmente cresciam e se desenvolviam em adultos, Turritopsis parecia se desenvolver semelhante ao “Curioso Caso de Benjamin Button”, do filme de 2008, baseado no livro de F. Scott Fitzgerald (1921), em que o personagem vai ficando mais novo ao longo dos anos. Alguns anos mais tarde, Christian juntamente com esses cientistas, publicaram um estudo demostrando a capacidade da espécie para se desenvolver em duas direções, tanto normalmente crescendo e envelhecendo, como também regredindo para estágios mais jovens, contrário ao que seria o sentido usual de desenvolvimento (Bavestrello et al. 1992). Essa regressão para estágios mais jovens pode ser seguida por uma retomada ao crescimento normal e tal capacidade tornaria Turritopsis dohrnii uma espécie potencialmente imortal (Piraino et al. 1996).
Figura 1: Ciclo de vida “normal” de águas-vivas e a variação chamada de “desenvolvimento reverso”. Exemplos de espécies que podem realizar o desenvolvimento reverso apenas em medusas jovens (vermelho): A – Nausithoe aurea. B - Hydractinia carnea C- Laodicea undulata. Fotos: Ciclo de vida, modificado de Boero et al. 2008, (B) retirado de Schmich et al. 2007 e (C) retirado de Vito et al. 2006. Escalas (B): 0.2 mm e (C) 1 mm.
Como qualquer outro animal, a maioria das cerca de 1000 espécies conhecidas de águas-vivas cruzam um caminho natural da vida. Elas crescem nadando livremente ao sabor das correntes do mar, se alimentam de outros animais do plâncton (Leia mais aqui), se desenvolvem ao longo de uma série de estágios, até se tornarem adultos sexualmente maduros. Então elas se reproduzem (por sinal, possuem óvulos e espermatozóides muito semelhantes aos nossos!) e após isso, morrem e se desintegram. Essa reprodução gera uma pequena larva chamada plânula, que desce até o fundo do oceano e se transforma em uma criatura com formato de tubo e tentáculos ao redor da boca, chamada de pólipo (Figura 1). Os pólipos crescem presos ao fundo do mar e podem se dividir formando grandes colônias com muitos pólipos clones, assim sendo de DNA idêntico. Depois de um tempo, os pólipos individuais (ou colônias de pólipos, dependendo da espécie) produzem novas medusas que crescerão, fechando assim o “ciclo de vida” dessas espécies. O problema é que entre as águas-vivas, a exceção parece ser a regra e a diversidade de padrões de ciclo de vida é a maior em todo o reino animal. Um desses caminhos alternativos é a capacidade de desenvolvimento ao contrário, chamada de “desenvolvimento reverso” ou “ontogenia reversa”, que ocorre em algumas poucas espécies de águas-vivas (mas é possível que ocorra em muitas outras). A medusa, geralmente ainda jovem, para de comer, seus tentáculos se retraem e ela vai para o fundo do oceano e dentro de algumas horas se transforma em uma pequena massa de tecido. Essa massa de tecido pode ficar por muito tempo “descansando” e mais tarde pode se transformar novamente em um pólipo, que retoma o ciclo usual de desenvolvimento. O grande diferencial de Turritopsis dorhnii, no entanto, é sua capacidade de realizar essa reversão, mesmo depois de adulta e em qualquer fase de sua vida (Piraino et al. 1996; 2004). A reversão depois do desenvolvimento adulto e pleno seria como se uma borboleta adulta ao invés de morrer, pudesse voltar e se transformar em seu estágio de lagarta.
Mas onde estaria o segredo dessa espécie que permite essa potencial imortalidade? No caso de Turritopsis, cientistas observaram que várias condições estressantes, como a falta de alimento, temperaturas muito baixas, ou a destruição mecânica da medusa, podem desencadear o desenvolvimento reverso. Essas alterações ativam certos grupos de genes, que provocam mudanças na organização das células. Todos os animais possuem as famosas “células tronco” (ou células pluripotentes), que se diferenciam em diversas outras células especializadas, por exemplo células musculares, neurônios e outros tecidos. No entanto, Turritopsis dohrnii possui células que podem realizar o caminho inverso, ou seja, células já especializadas podem voltar ao estágio não-diferenciado (de célula-tronco), ou ainda transformar-se diretamente em outros tipos de célula. E esse é o segredo de Turritopsis! Tal capacidade de transformação das células é chamado de “trans-diferenciação celular” e permite que essa medusa reorganize as células especializadas de seu corpo, perdendo as células “desnecessárias” e revertendo seu crescimento. Se uma única medusa conseguir realizar essa reversão indefinidamente, isso a tornaria potencialmente imortal. No entanto, nenhuma medusa foi seguida por muito tempo e também ainda não possuímos meios de medir a idade das águas-vivas da natureza e saber quantas vezes é possível realizar essa reversão. Apenas o cientista japonês Shin Kubota, da Universidade de Kyoto conseguiu acompanhar Turritopsis dorhnii por 2 anos, quando observou esse ciclo de crescimento e reversão ocorrendo 10 vezes seguidas (Kubota 2011).
Fígura 2: Desenvolvimento reverso em Turritopsis dohrnii (a) Medusa saudável. (b) Medusa se transformando - boca à direita e os músculos à esquerda, corada com marcadores Brdu (verde) mostram locais de multiplicação das células. (c) Estágio “massa de tecido” também corada. (d) A “massa de tecido” começa a se expandir, ainda com restos do tecido da medusa (setas brancas) e produz um estolão típico do estágio de pólipo (seta preta). (e) Um novo pólipo se forma após o desenvolvimento reverso de uma medusa (dentro de 36–48 h à 24 °C). Escalas: (a) 1 mm; (b) 500 μm; (c) 300 μm; (d e e) 500 μm. Retirado de Piraino et al. 2004.
A imortalidade pode ser na verdade indesejável, como na mitologia grega em que alguns deuses amaldiçoam mortais que os enganaram, com a eternidade. Ou no livro “Intermitências da morte” de J. Saramago de (2005), onde a Morte suspende seus trabalhos, condenando humanos a viverem para sempre. Se a imortalidade dessa água-viva ocorresse de fato na natureza, em pouco tempo o oceano estaria cheio dessa espécie, o que causaria uma grande calamidade. Porém, felizmente, a ontogenia reversa não impede que o destino dessas medusas seja o de se tornar comida de peixes, tartarugas, ou de qualquer outro animal marinho. Além disso, como qualquer outro ser vivo, Turritopsis não é imune a doenças, de forma que existem meios de interromper a vida da espécie.
O desenvolvimento reverso é uma estratégia de sobrevivência: se a espécie encontra um ambiente pouco favorável, mecanismos internos a fazem voltar para um estágio anterior. Ou seja, se “o mar não está pra peixe”, a medusa interrompe seu crescimento, volta para o fundo do mar e começa tudo novamente. Outras espécies de medusa e mesmos os pólipos também podem se transformar em massas de tecido protegidas por uma cápsula e assim ficar por até alguns anos, esperando condições melhores para seu desenvolvimento. Mesmo assim, a capacidade de trans-diferenciação celular em Turritopsis dorhnii pode representar um grande passo para a compreensão de muitos outros mecanismos celulares de envelhecimento, de regeneração de tecidos e até de rejuvenescimento no reino animal. E quem sabe um dia, revelar alguns segredos sobre a imortalidade (veja o link do Youtube – Google Zeitgeist: Dr. Shin Kubota e a água-viva imortal.
Sobre Renato Nagata:
Assim como muitas outras pessoas, sempre tive uma atração pelo mar, um ambiente estranho e pouco familiar para alguém nascido e criado no interior do Paraná. Quando cursava ciências biológicas na UFPR, surgiu a oportunidade de um estágio para estudar águas-vivas. Não podia imaginar que estava mergulhando em um vasto universo com diversas possibilidades. Além de bonitas (notem as imagens que decoram este blog!), percebi que as águas-vivas (ou medusas) eram muito abundantes nas águas escuras do litoral do Paraná. Com isso, começaram a surgir inúmeras perguntas: quando elas ocorrem? Onde ocorrem? O que elas causam ao homem e aos demais componentes do ecossistema? Fiz mestrado em zoologia na UFPR e depois me mudei para São Paulo, onde conclui recentemente o doutorado na USP, também em zoologia. Atualmente tenho interesse por questões sobre as águas-vivas que só podem ser investigadas quando olhamos medusas vivas e pulsantes: Como é o crescimento e o desenvolvimento desses animais? Como as espécies realizam funções básicas como nadar e obter alimento? Além da pesquisa, também sinto a necessidade de compartilhar um pouco do que faço. Por isso, aceitei imediatamente o chamado de Netuno, para contar alguns “causos” e trazer à tona curiosidades sobre esses fascinantes habitantes dos mares!
Bavestrello, G., Sommer, C., and Sarà, M. (1992) Bi-directional conversion in Turritopsis nutricula (Hydrozoa). In Aspects of hydrozoan biology. Edited by J. Bouillon, F. Boero, F. Cicogna, J.M. Gili, and R.G. Hughes. Scientia Marina 56: 137–140.
Kubota S. (2011). Repeating rejuvenation in Turritopsis, an immortal hydrozoan (Cnidaria, Hydrozoa). Biogeography 13: 101–103.
Piraino, S., Boero, F., Aeschbach, B., and Schmid, V. (1996) Reversing the life cycle: medusae trasforming into polyps and cell transdifferentiation in Turritopsis nutricula (Cnidaria, Hydrozoa). Biological Bulletin 190: 302–312.
Piraino S, De Vito D, Schmich J, Bouillon J, Boero F (2004) Reverse development in Cnidaria. Canadian Journal of Zoology 82:1748–1754
Rich, N. Can a Jellyfish Unlock the Secret of Immortality? The Ney York Times, 28 de novembro de 2012. http://www.nytimes.com/2012/12/02/magazine/can-a-jellyfish-unlock-the-secret-of-immortality.html?_r=0 acessado em 30/05/2015.
Adorei o texto Renato. Muito curioso esse ciclo de vida "Brad Pitt"!
ResponderExcluirBoa Mitsuo! Texto muito bom meu velho. Já tinha lido sobre aTurritopsis dorhnii, mas nada como um especialista nas medulas. Vou divulgar pros meus alunos. Valeu brothá
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